quarta-feira, novembro 18, 2009

BERCEUSE

Para GS

Une berceuse est une chanson douce destinée à aider les enfants à s'endormir. Il existe des berceuses chantées dans toutes les langues du monde.
Wikepedia francesa e sua definição para canção de ninar




Desde que voltara ao continente ela sentia esse cheiro de podre que vinha da baía. Ninguém mais parecia sentir. Não sabia se os outros haviam se acostumado ou se o cheiro que sentia vinha de dentro; de algum lugar de sua alma estragada.

Conhecia muita gente, mas à medida que reencontrava os velhos rostos, sentia um cansaço extremo. Estes rostos que lhe eram conhecidos, apesar do tempo curto de sua ausência, agora lhe pareciam outros. Ou o problema era todo dela que não mais se reconhecia nos rostos amigos de outrora? Tudo havia mudado. Ela era outra. E ainda se acostumando com essa outra dentro dela, que era ela, decidiu aceitar a amizade e o afeto de um estranho. Assim não ficaria com a desagradável sensação de ter somente para interagir os velhos rostos do passado que não eram mais os mesmos e ainda ter que fingir que nada havia mudado.

E foi desta maneira que ela se surpreendeu quando entrou na casa deste novo estranho. Não era a primeira vez que entrava ali, mas tudo no ambiente ainda tinha um aroma de novidade. Era bom um rosto que não a conhecia direito a recebendo em sorrisos sem condescendência. Era a terceira ou quarta vez que entrava naquela casa. Mas dessa vez todas as luzes estavam apagadas. Não eram amigos nem eram amantes. Eram dois estranhos precisando da companhia um do outro na tênue esperança de se reinventar. Havia encontrado outro exilado com suas mesmas necessidades.

No escuro ele a recebeu. Tocou sua mão com suas mãos quentes. Conduziu-a a uma das cadeiras da mesa de jantar. Ela sentou. Mal e porcamente a cumprimentou mas as mãos que a guiaram eram calorosas e ternas o suficiente para deixá-la segura. Apesar do inusitado ela tinha certeza que não corria perigo.

Em frente à cadeira uma tela de um computador portátil aberta iluminou finalmente o seu rosto. Ele pediu para que ela fechasse os olhos e colocou, sem que ela visse, um fone em seus ouvidos. Um ato um tanto paternal, pensou em um misto de inusitado incomodo e conforto pelo ato. É essa a música que andei te falando, sussurrou antes das notas suavemente formarem uma sequência harmônica e sutil. Sentiu uma sensação estranha, que pouco sentia desde muito tempo. Uma sensação de ser e mais nada. Uma sensação de que finalmente voltava a existir.

A música estava dentro dela, mas mesmo assim começou a perceber uma outra presença. Sua alma já não apodrecia na mesma velocidade. Abriu os olhos marejados e se deparou com os vivos olhos dele. Olhos vivos sobre ela. Olhos que tudo o que pediam era a sua aprovação a uma música que neste momento só pertencia a ela. Ela não podia negar o que ele pedia, mesmo que muito quisesse. Haviam olhos marejados estampando seu rosto para lhe delatar.

Os lábios dele mexiam. Ele falava, mas ela não conseguia ouvir. Não importava. A música estava dentro dela e ela sabia o que ele queria sem precisar entender as suas palavras. A cena dele falando sem emitir nenhum som que ela fosse capaz de ouvir até tinha um quê de cômico, o que a encheu de repentina ternura. Sorriu e fez que sim com a cabeça, concordando com todas as palavras mudas que ela só via existir.

Fechou os olhos novamente e por mais que sentisse a presença dos olhos dele sobre ela permaneceu assim. Era bom saber ser observada quando algo tão bonito entra dentro de você e mata a podridão quase irremediável em que se encontra a sua alma.

Ao final da música, ela retirou o fone dos ouvidos, agora com suas próprias mãos, sempre frias. Ele acendeu a luz que feriu os olhos dela. Tudo estava claro. Ele olhou para ela e sorriu. Ele sempre sorri de suas caretas de reação a situações inesperadas e essa claridade repentina não estava nos planos dela. Agora ambos sorriam embora existisse um choro que ela tentava prender. Não sabia se esse choro preso era melancolia ou alegria. Ele perguntou o que ela havia achado, ela permaneceu com o sorriso que era sincero. A música era linda, não havia dúvida sobre isso. Ele tinha toda razão.

A brisa da janela trazia o vento da baía para dentro da sala. Mais uma coisa estranha, a brisa agora cheirava a um delicado perfume de sereno. Agora ela conseguia ver que um dia as coisas acabam bem. Os sonhos finalmente viriam visitá-la na longa noite em que já havia se acostumado viver.

Barbara Kahane

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