terça-feira, setembro 01, 2009

Ao pé do ouvido das minhas paredes

Quem conhece o solo e o subsolo da vida, sabe muito bem que um trecho de muro, um banco, um tapete, um guarda-chuva, são ricos de idéias ou de sentimentos, quando nós também o somos, e que as reflexões de parceria entre os homens e as cousas compõem um dos mais interessantes fenômenos da terra. A expressão: "Conversar com seus botões", parecendo simples metáfora, é frase de sentido real e direto. Os botões operam sincronicamente conosco; formam uma espécie de senado, cômodo e barato, que vota sempre em nossas moções.
(Quincas Borba – Machado de Assis)


Os objetos inanimados de sua casa eram bem animados. Falava com eles e eles respondiam, reagiam, opinavam. Resquícios inconscientes de uma peça teatral escolar encenada aos dez anos de idade em que interpretava uma vitrola em uma casa repleta de objetos inanimados e nenhum ser humano. Escolheu esse papel para poder cantar, um sonho que já existia à época. Nos ensaios, como uma boa vitrola, ela cantava achando que assumia o papel esperado. Mas obtinha de resposta a risada unânime de todos os seus colegas que compunham o elenco, como se ela estivesse a fazer piadas. Risadas do gorducho relógio ruivo da terceira série, risadas da estante vara pau da quinta série. E sua interpretação, que tinha por intenção primeira emocionar os corações com sua bela voz, acabou direcionada a um tom mais cômico que muito a magoou quando a reação do auditório repleto de pais em gargalhadas histéricas selou seu destino artístico. Desde então jamais subira em um palco novamente. Nem para cantar, nem para interpretar. Suas encenações, agora que morava só, eram para seus móveis e objetos, que sempre respeitavam com o devido decoro o talento que ela sabia existir, mas que havia sido rejeitado pelas pessoas.

Quando se mudou para um apartamento seu foi um regozijo só. Finalmente tinha ao quê confessar seus pensamentos mais íntimos - dos sórdidos aos nobres - sossegadamente. Na casa em que vivera toda a vida não tinha com o quê se abrir. Pai, mãe, dois irmãos homens, uma mulher e uma empregada doméstica residente eram piores do que mil portas. As poucas palavras trocadas com essas pessoas feitas de carne e osso (mas pouca alma) eram as mais vazias: “bom dia”, “boa noite”, “me passa a manteiga, por favor” “feliz aniversário papai” “me perdoe mamãe pelo boletim todo em vermelho”. Dentro de seu quarto, que dividia com a irmã, quando se encontrava sozinha via um estranho, mas reconfortante prazer em conversar com as bonecas. Até o dia em que as bonecas foram doadas a um orfanato (sua mãe achava que estava grande demais para esses tipos de fantasias). Chorou e descobriu pela primeira vez o colo do travesseiro que desde então passou a assumir o papel de amigo mais fiel. O amigo que, com seus conselhos sempre certeiros, lhe transmitia uma verdadeira sensação de vida, coisa que não alcançava com o convívio diário com a família zumbi.

Sair para rua diariamente era um verdadeiro sofrimento. Tinha a seus acessórios para recorrer, mas tinha que ter cuidado para não ser confundida com louca pelas ruas, aos bate-papos com seus botões. Mas o pior, o pior mesmo, era desviar das pessoas em qualquer trajeto que tomasse. Era lidar com o caixa do banco, com a caixa do mercado, com o porteiro do prédio. Às vezes, para não ouvir as asneiras que por acidente captasse, saia de fone conectado ao mp3 player e cantava um canto baixinho, para se proteger de palavras arremessadas ao vento que pudessem eventualmente lhe atingir e para não correr o risco de causar o riso involuntário a quem por acidente acabasse ouvindo-a em seu cantar triste.

Não que não gostasse de pessoas. Apenas não sabia como se portar na frente delas. O medo que tinha de não alcançar as expectativas dos poucos que calhava conhecer (no trabalho, por exemplo) era equivalente à certeza de saber também que ninguém superaria as dela. Sabia sorrir amarelo e ser bem educada e no escritório repetia a rotina tantas vezes feita em casa nos anos de formação e aprisionamento: “escritório de advocacia, boa tarde”, “Dr.Gomes mais um café?” “queira aguardar, por favor. Palavras vazias para passar o tempo.

No final do dia chegava em casa, preparava um sanduíche e tomava banho. Ia fazendo isso contando seu dia para o quê estivesse em volta. Nunca houve desinteresse. Após o banho escovava os longos e pesados cabelos. Fazia penteados extravagantes muito aprovados pelos Espelhos, dançava para o Alto Cabideiro que se oferecia no bailado, cantava e cantava para Escova que para agradá-la se fazia de Microfone, agradecia em reverencia ao Sofá e Poltrona, ia dormir seduzida pelo Seu Cobertor.

Parecia uma vida triste e sozinha, mas não era. O pensamento antes do sono era sempre o mesmo: pobre daqueles que depositam em ouvidos alheios todas as expectativas de uma vida. Ninguém deveria esperar tanto do outro. Nos afundamos em cobranças que inventamos exigir à desculpa de ser felicidade e depositamos o potencial de sucesso desse estranho sentimento numa pobre alma como a nossa.

O Travesseiro, velho e sábio companheiro, então a ninava para as desventuras do próximo dia. Às vezes ela chorava baixinho. Ainda assim dormia sempre tranqüila. Suas paredes não tinham nada de traiçoeiras.

3 comentários:

Anônimo disse...

"Os botões da casa" - Roberto Carlos

Por que será que botões moram em casas? Aliás, nem todos, só os bem sucedidos. A maioria deles fica guardada numa gaveta de um armarinho, ou lojas de material de costura... Às veses esperam anos, até que uma alma mortal os levam para uma camisa, uma calça, um vestido. Todos conhecem os botões devidamente empregados, ostentando posições em roupas... mas e o pobre do botão da gaveta? Quem lembra dele?

Talvez por isso botões sejam bons confidentes. Sabem ouvir até o fim, e não ficam dando palpites inúteis, como os maus ouvidos, mais preocupados em falar que ouvir.

Ricardo Ruiz

Anônimo disse...

Tá bonito, lembra Pessoa/Bernardo Soares.O desassosego acalmado pelos botões; a solidão temperada pela tática de sobrevivencia, texto muito bem temperado. A voz que narra a vida do eu só no meio de todos os não-eus que o cercam. A escrita que fala do lugar de só eu em que vivemos. Há uma saída? Aonde? Autora vai longe. jose luiz

Flávio de Miranda disse...

O travesseiro... Essa travessa em que se encontram os pensamentos dos que pela rua passam sem se encontrar. Bjo!