quarta-feira, novembro 25, 2009

DITONGOS





572

No ponto da padaria subo no 572. Dentro, um senhor de idade e aparência frágil dorme, encostado como um pão velho contra a vidraça, suando enquanto as luzes dos postes que passam pelo seu rosto fazem brilhar as gotas de suor na testa e realçam os pequenos e bem cavados triangulos de pele nas bochechas, como tortillas de doritos em miniatura cravadas numa pasta de grão de bico em fim de festa.

O cobrador, passeando um sorriso desocupado, sem muito o que fazer, procura com quem conversar, com uma cara benevolente de quem faria no mínimo um gesto amigável de ok com o polegar caso alguém lhe pedisse uma paradinha fora do ponto. Mas pelo aspecto dos passageiros, que mais pareciam estar derretendo aos poucos nos assentos, ninguém conseguiria descer antes do terceiro giro do ônibus pela cidade, ou faria outra coisa além de transpirar com cara de sofrimento ou de se abanar com cara de alívio. Muito menos eu, mero expectador, com meus fones de ouvido, na expectativa de alguma brisa. Ele então mira atentamente o casal de estrangeiros pálidos sentado à sua frente, enquanto eu tiro os fones para ter a cena por completo: Vão descer aonde?

– Copacabana...

– Copacabana? sorriso malicioso do cobrador – Vai ter que trocar de ônibus! (faz o gesto giratório com os dedos e desce da sua cadeira para explicar mais de perto)

E conversa vai, conversa vem. Quando a mímica não dá conta, o cobrador pede emprestado o dicionário bilingue do casal: - Rio... wanderful, né? – Yes, wonderful! concorda o casal. Ele então aponta para o motorista e diz: - Ele, o motorista... (faz o gesto de quem dirige) – Yes, yes, the driver! esclarecem os gringos, entusiasmados – Yes, de driver! concorda o cobrador – So, o driver, é uma woman! (faz o gesto de desmunhecamento com a mão e abre um sorriso cheio de dentes). O casal se entreolha e ri, mais por comunhão antropológica do que por entendimento. O tom do humor lhes escapa um pouco. O cobrador então repete, não por perceber que o casal não entendeu os pormenores da brincadeira, mas porque faz parte da sacanagem, curta, contá-la duas ou mais vezes, pra fixar. Vale dizer que ele estava simplesmente encantado em entreter o casal. E completa, apontando novamente para o motorista e depois para o próprio cucuruto:
– Ele, o driver... É careca e também é woman! e gargalha, descolando o rosto do senhor da vidraça, que aparentemente dormia, e que para surpresa de todos solta uma tremenda gargalhada depois de limpar a baba com a manga da blusa – Bald, bald! traduz o casal, enturmado. O motorista, passando uma toalhinha na testa e rindo, diz: – Avisa aí que a gente deixa eles num circular na praia.





(Arnaldo, o "toalha", é um dos suspeitos procurados pela polícia)



Não tem melhor não?


Chuviscava na autoestrada Lagoa-Barra. O dia era cinzento. A Lagoa nesse dia parecia ser não só água e lodo e peixes invisíveis e marolas irregulares e prateadas, parecia também ser de pedra. Uma grande cuia virada criando uma estufa de tédio, ou algo inconcreto assim, talvez mais besta ou mais preguiçoso, era a tarde. Para os especialistas em ansiedade, o termo correto para esse edredom é um saco. Resolvi então apelidar as três cabeças das poltronas à minha frente de “turma do deixa disso” (isso sendo o foco, a atenção). Eram duas arredondadas e calvas e uma adornada com um negríssimo rabo de cavalo curto e compacto. Distração para quando acaba a pilha da música, aquela guitarra safadíssima. Nos tempos do colégio era assim: Tenho que ver vinte gostosas até chegar em casa.



Há de ser dito que eu não esperava absolutamente nada daquela tarde, nenhuma surpresa, nemhum solavanco, muito menos o desviramento milagroso da grande cuia. Talvez somente a escapolida do elástico que prendia o rabo de cavalo da terceira cabeça, que estalaria na nuca da segunda cabeça? Seria divertido? Talvez um súbito desafogamento do trânsito?

Nada disso acontecendo, imaginei um vendedor serelepe numa loja de instrumentos musicais, que, ao ouvir os pedidos dos clientes, repetiria o nome do instrumento fazendo seu som característico com a boca... Bem, melhor falar da curva. Bom, houve uma curva, e chuviscava menos no canal, e tinha um carro atolado no canal. Um carro no canal! Olha a cuia dando uma levantadinha! E a motorista do ônibus, uma mulher com cara de poucos amigos, comenta, categórica: - Só homem vendo... que vergonha...Tudo vagabundo, sem ter o que fazer, tst tst tst... E o cobrador responde: Olha ali umas mulheres, tudo parada...Ó lá, os homens estão ali pra ajudar no guindaste, no carro... Boa tarde madame, não tem menor não? Tô sem troco. Vai descer aonde?

- Tu qué é me derrubar. Mas aí te pego na curva, ó! provoca a passageira, uma jovem manca muito magra e mal encarada que entraria facilmente no meu top 20 do dia – Né isso não! responde o cobrador, assustado, enquanto tira do bolso um maço de notas. Então a motorista, bufando, larga o volante, levanta, e numa repentina aliança com a passageira revoltada (um beijo), começa a estapear o coitado do cobrador. O ônibus estava desgovernado, o pânico reinava entre os passageiros, havia fogo, gritos, uma equipe do rj tv, máscaras de oxigênio caindo de cima das aeromoças, e eu só acordei quando já tinha passado do meu ponto. Limpei a baba na manga da blusa e desci.



Casal adolescente no Catete.¹ (em dia ensolarado)

- Sabe o que você é quando você anda?
- O quê?
- Linda!
- É mesmo? ela responde corando
- É! Caralho, o 572! Corre!!

¹ Sobre o incidente com o pudim de tapioca, ver English, op. cit., p.68 (apud_redux_)




Cem anos de audição

O vô sempre contava essa história delirante. Depois de tantas e tantas vezes contá-la para os netos, para os namorados e namoradas das netas e netos, para as mulheres e maridos dos filhos e filhas, para a baiana do acarajé predileto, para os entregadores de pizza de berinjela ou de colchões ortopédicos, para as visitas solitárias ou acompanhadas ou para quem mais aparecesse e o encontrasse sentado em sua confortável poltrona reclinante da sala (hoje disputada a tapas e beliscões fraternos entre os incontáveis filhos dos netos), decidimos gravá-la. E quando a ouvimos, alguns soltam fiapos de peidos finos enquanto riem, o que diverte bastante, outros ficam com os olhos vermelhos de cerveja e comoção, outros gargalham e arrotam sabor de carne, o que afugenta os mais sensíveis e leva ao delírio a juventude gritante que pede mais, e mais licor de jenipapo para as namoradas e ficantes ou para a Vânia, que trabalha na casa há décadas e também bebe na história. Às vezes os amigos da família escutam, outras vezes as namoradas e namorados das amigas e dos amigos dos filhos dos netos, outras vezes os entregadores de comida chinesa com cara de fuinha, e assim sucessivamente...




Dois e trinta na pastelaria

- Opa!

- Se você quer fechar os poros da pele tem que usar esse creme, menina!

- E aí?

- Ai, mas é muito caro!

- Tava lá com o Benga. Ele disse que vai comer muito peru no Natal. Falou que o índio da pastelaria vai dar muito peru pra ele de Natal. Tu não é o índio da pastelaria?

- Que nada, tá vendendo nas americanas, baratinho! Depois a gente passa lá e eu te mostro.

- Eu não!

- Gente... Olha que gato do outro lado da rua, e tomando sorvete!

- É sim, mermão! (abre a garrafa de coca cola e dá uma risada sarcástica)

- Lembra o jãojão, mas ficou tão gordo ele depois...

- E tu veio de lá andando? (serve uma coxinha)

- Cê não quer parar pra comer alguma coisinha não, querida?

- E eu vou dar mais dois e vinte pra empresário de ônibus? Venho andando que tá bom. Tô com tempo, minha aula é aqui do lado. Vê aquele joelho ali? Não, não, o de cima.

- Vamos, também tô com uma fome que nem te digo... E se não comer antes do curso vai ser dificil de aturar o Arthur falando...

- Que horas?

- Mas algum lugar com ar condicionado, né?

- Seis e meia. Ó, tenho ainda cinco minutos.

- Ofe corse!

- Tá atrasado. Aula de quê? Tô fazendo informática.

- Ali?

- O meu é inglês e informática.

- Ah, mas eu não gosto de empada, acho sem graça.

- Vai lá!

- E se a gente comesse um salgado na pastelaria? Loucura?

- Quanto que dá isso aqui?

- Ai, vamos?

- Dois e trinta.

- Oi moço, me vê uma coxinha e um joelho por favor? Mas é de agora, né? Tá fresquinho?

- Moça, fresquinho com esse calor só refrigerante, que tá na geladeira.




(as duas carecas do ônibus)





(outro ângulo de Arnaldo, o "toalha")

Signifrito Figueirosa

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