terça-feira, maio 13, 2008

A AUTOCOMISERAÇÃO DE JOÃO S

Não tentes consolar o desgraçado
Que chora amargamente a sorte má.
Se o tiraste por fim do seu estado
Que outra consolação lhe restará?
(Do Pranto, Mário Quintana)




Possivelmente acho essa vida uma merda. Não tenho certeza, mas os indícios ficam cada vez mais fortes conforme os anos passam e eu cada vez mais velho e infeliz. Alimento um profundo desprezo pelos outros. Por qualquer um. À primeira manifestação interpretei esse sentimento como pena e durante muito tempo acreditei que eu sentia uma enorme pena pela humanidade. Hoje vejo que não. Aquilo que sinto pelos outros, por qualquer um, é desprezo.

Nessa maldita festa de fim de ano do escritório eu tenho a nítida certeza que posso morrer a qualquer minuto. Uma certeza absoluta. Quando cheguei nesse restaurante a quilo fétido fechado pela empresa para essa absurda comemoração, meu coração se encheu do mais profundo desprezo por toda a humanidade e desde então essa sensação de morte me acompanha nos cantos à meia luz dessas ridículas iluminações de néon. As luzes frias alternadamente acesas junto às decorações de enfeites de papel crepom verde e vermelho que tomou todo expediente das secretárias em alvoroço pela tarde na distinta responsabilidade de ornar o salão, simplesmente me embrulham o estômago e eu sinto que se não acabar vomitando na cara de alguém meu coração irá parar. De uma maneira ou outra estou pronto para, ainda que involuntariamente, acabar com essa festa despropositada e ridícula que esse bando de pessoas armou e eu aqui me obrigo aturar.

Garçons de uniformes amassados perambulam pelo salão com bandejas repletas de cerveja. Os patrões prometeram cerveja à vontade e parece que o trato, pelo menos nessa primeira hora, está sendo cumprido. Pego um copo e sem surpresa constato que a cerveja está quente. Os patrões hora nenhuma se comprometeram oferecer a cerveja prometida gelada, portanto pego o meu copo com um simulado sorriso de gratificação e me sento num canto escuro numa das poucas mesas ainda não ocupadas por ninguém. Espero que aqui eu seja tão apagado como faço questão de ser no escritório e ninguém note a minha presença se sentindo no dever natalino de tentar me fazer interagir. Prefiro esse canto escuro com a minha cerveja quente e o meu poder de observação melancólica desprezando cada indivíduo que cruza o meu olhar.

Ontem Renata olhou nos meus olhos e me disse que tinha certeza que eu nunca tomei uma decisão certa na vida. Durante todos esses anos em que estamos juntos ela decididamente nunca viu isso acontecer e pelo histórico que eu apresento através da minha relação com família, trabalho e amigos, ela chegou à conclusão irrefutável que eu nunca, jamais, em qualquer dia da minha existência fui capaz de tomar uma decisão que valesse à pena. Minhas escolhas, segundo Renata, são sempre as piores. Acho que ela tem razão porque naquele momento em que ela acabou de proferir essas considerações eu escolhi não esmurrá-la na cara, escolhi não abandonar o apartamento batendo a porta ferozmente rumo à noite escura. Ao invés disso eu não fiz absolutamente nada. Ou melhor, eu escolhi abrir a porra de uma lata de cerveja quente e choca e me sentei no sofá sem deixar sair um pio da minha boca. Renata então começou a gritar, espernear até finalmente sair ela pela noite escura. Renata não me viu chorando. Renata bateu a porta rumo à noite escura e quem ficou no sofá chorando como uma mulherzinha fui eu.

Renata é muito ponderada e sempre tem razão. Foi assim desde o dia em que a conheci. Todos os amigos de Renata a procuram porque ela é a voz da razão. Suas opiniões são sempre levadas seriamente em consideração e normalmente seus conselhos são seguidos à risca por aqueles que a rodeiam. Eu respeito essa característica de Renata tentando sempre esconder a minha irritabilidade quando ela cheia de pompa e orgulho define uma verdade como uma doutrina a ser seguida pelos seres inferiores que tem a graça de seu convívio. Eu me irrito com Renata, mas me reconheço também como um ser inferior perto das certezas dela, portanto se ela me disse que tem certeza que eu nunca fui capaz de tomar uma decisão certeira na vida, ela possivelmente tem razão. Por mais que eu despreze hoje em dia Renata e esse seu pseudodom que nada mais é do que um poder perverso de controlar as pessoas, ela tem razão e eu nunca tomei uma decisão certa na vida.

Existiria alguma escolha não feita por mim que me levasse efetivamente a uma vida que não essa? Existiria algum lugar ou tempo no mundo ou espaço em que eu não sentisse esse profundo desprezo pelos outros e essa maldita pena de mim? Tenho muita raiva porque não tenho dinheiro, mas eu seria um homem sem raiva se o tivesse em demasia? Tenho uma raiva descontrolada de Renata por ela nunca ter podido me dar filhos, mas eu teria menos raiva se os tivesse? E se essa onda de desprezo se aplicasse também a eles não seria mais um motivo de sofrimento para mim? Mais uma razão para eu me sentir patético ao ver que existe da minha parte desprezo em relação a eles? E ainda pior, se eu os enxergasse como meus espelhos e sentisse pena de suas condições? Que tipo de indivíduo se torna uma criança criada sob os lhos penosos do pai? Talvez minha única decisão certa na vida tenha sido escolher permanecer com Renata todos esses anos mesmo sem ela poder me dar filhos, já que raiva eu sei que sentiria de qualquer uma que se propusesse dormir e acordar comigo. É uma condição irremediável e pelo menos as certeza de Renata me guiam, ainda que eu não entenda o caminho e despreze profundamente a direção.

Possivelmente acho a vida uma merda, e tem piorado. Sinto culpa quando me escapole um sorriso sincero ou quando acho graça genuína de algo que não seja alguma pilhéria maldosa contra alguém. Uma culpa que me consome porque imediatamente ao instante do alívio vem à lembrança o desprezo que eu sinto ininterruptamente. O desprezo que é maior do que tudo com exceção dessa pena profunda que eu sinto de mim.

Ontem Renata bateu a porta e desde então só faço beber cerveja quente. Começou ontem no sofá enquanto eu chorava sozinho a falta das irritantes certezas de Renata e agora num canto escuro desse restaurante tétrico sinto que está longe de acabar. O garçom é o único que me nota e me serve de mais um copo. Coloco dez reais no bolso de seu paletó para que as coisas permaneçam assim nesse quilo de quinta e suas luzes de néon. Não venho aqui há três meses quando achei uma lesma nojenta no meu alface. O velho gerente não me cobrou o prato, mas se sentiu no direito de cobrar pela coca. Eu escolhi não vomitar na cara dele e fui embora para nunca mais voltar. Os patrões prometeram cerveja a festa inteira e eu agora estou aqui, de volta, sentindo um profundo desprezo por eles, pelos meus colegas, por esses garçons obrigados a servir cerveja quente, pelo gerente velho que bajula os patrões fingindo depositar gelo filtrado em seus copos de uísque, e por qualquer um que se atreva passar diante dos meus olhos. Possivelmente acho essa vida uma merda e neste restaurante desprezível eu sinto que posso morrer. Tenho a leve impressão que Renata nunca mais voltará.

BARBARA KAHANE

6 comentários:

Flávio de Miranda disse...

Queria elogiar. Mas qualquer elogio soará desprezível a essas auturas. Ainda assim, arrisco um tímido parabéns, tão comedido, confuso e alegre como alguém que deposita dinheiro em um bolso amarrotado de um garçom idem, na esperança de ser servido um pouco mais com cerveja quente num quilo nojento. Mas depois, quando finalmente eu ficar de porre e um pouco da minha tristeza passar, eu deixo de lado meus parabéns insossos para mandar um "PQP" de parar o bar, para por fim, depois de tétricos segundos de ansiedade alimentados pela mínima alegria de algo novo passando em nossas mentes, voltarmos a pensar nas lesmas dos alfaces. Pelo menos estarei mais contente por ter lido um texto seu.

azzi disse...

vc tem umas exatidões. do tipo que os grandes escritores tem mesmo.
desculpe falar assim. parece bajulação, mas não é.

(de qqr modo, infelizmente, eu não sou do tipo que volta... ha!)
;P

Mariana Kaufman disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Mariana Kaufman disse...

não se volta ao desprezo, ele ficará sozinho e, fialmente, poderea desprezar apenas a si mesmo, bom pra renata e pra os filhos que nunca terão.

possivelmente eu acho a vida uma merda, mas definitivamente sei que esse texto é maravilhoso e você uma puta escritora!

ufa... que coisa, barbara...

Mauro Jorge disse...

que beleza babi!
não quero estragar a tua desgraça mas tu tás escrevendo muito bem.

Tinha um poema que fiz uns esboços uns anos atrás que chamava-se "O desgraçado nonchalant".
Nonchalant é aquele que porta-se de uma maneira calma,
frequentemente desatento de qualquer perigo ou cuidado.

Hoje já não me preocupo com a despreocupação na desgraça; esta vertigem a mais no perigo.

beijo
Mauro

Mauro Jorge disse...

Mauro - UNESA - RJ - 1998