
Insólito sim foi quando lá pelas tantas, após ter salvado o ânimo da baleia de sono que ataca no café, de ter atolado a fé na vida no ócio rançoso das três da tarde, de ver o entusiasmo como um teco teco desgovernado raspando as poças de marasmo tépido que meus vizinhos de mesa tomavam com adoçante, de ter acompanhado o mal humor da moça da biblioteca sumindo ao celular, eu sentia às cinco da tarde a concentração vagar como um turista desatarefado num vasto lago de subterfúgios do estudo, onde o som metálico das gavetas se abrindo vinha na verdade das gaivotas de Hugo Pratt deitadas na estante ao lado, cujos olhos na capa, como os meus na cara, eram dois pontos pretos a cambalear entre as rachaduras da infiltração, urubus retorcidos do céu descascado, e o papel bege da página povoada de verbetes obsoletos do Grande Tratado dos Seres, que eu lia para a prova.
Depois de numa retomada de fôlego alcançar a parte em que se elucidava a ética do ornitorrinco fêmea, mais precisamente na oitava linha do terceiro parágrafo da página 3467 do Tomo 3, eis que um final de frase inusitado dá as caras: “... e para tal, a fêmea nunca deixará de esquecer o guarda-chuva na toca.”
Seguia-se a esta inacreditável revelação sobre os hábitos da senhora ornitorrinca uma nota de rodapé, que, pensei, esclareceria o caso. Mas, para coroar minha incredulidade, quando lá chego, leio: “BANHO”...BANHO!. Do banho saía uma seta mal traçada em caneta bic, um fantasma de seta que definhava pelo pé da página até morrer em outro comentário, escrito por ninguém mais ninguém menos do que alguém entre os milhares de leitores que já haviam freqüentado a biblioteca desde 1975, ano da incorporação do Grande Tratado ao acervo:
TOMO CHUVA
FICO NEVE
CÂNDIDO
E foi um toró na poça descascada do meu turista desatento. E foi um avião estraçalhando as gaivotas de café morno retorcido quando li, depois do “O” final de Cândido, entre parenteses : “ver apêndice 9”.
Lá vou eu para o apêndice 9, mais precisamente para a página 10476, cujo título já não me surpreenderia: “Cândido, assinatura ou luar tão?”. Cito apenas um trecho para dar idéia da fria em que eu me metia: “Talvez, assim como omitira o um banho de da primeira linha e o fico branca como da segunda, o comentarista tenha também omitido o oh luar tão da última.”
A.M
4 comentários:
Oi,
Linkei vcs no meu blog. Muito bom os teus textos e o da Barbara. Aliás, amei o conto "Esses seus olhos meus".
Me passa por email aqueles links do Deleuze...
priscilarosario@gmail.com
bjs
Oi,
Linkei vcs no meu blog. Muito bom os teus textos e o da Barbara. Aliás, amei o conto "Esses seus olhos meus".
Me passa por email aqueles links do Deleuze...
priscilarosario@gmail.com
bjs
muito boas imagens!...
azzi
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