
Reencontrei a caixinha marroquina num pequeno antiquário em Copacabana, escondida entre estrelas de porcelana, estatuetas de ninfas e luminárias sessentistas de cúpulas policromáticas. De um canto escuro da saleta saía uma fumaça, que flanava pelo ar num proceder ondulante, alisando as jubas dos leões de jacarandá, atravessando molduras vazias encostadas nos móveis, espalhando cheiro quente de cravo no ar. Ao aproximar-se de uma das ninfas, a fumaça, como que atônita diante de uma epifania do caminho, transformou-se numa admirável miniatura de vórtice, cujo olho, notei, adentrava o buraco de fechadura da caixa.
Como no encontro entre duas correntes marítimas de temperaturas conflitantes, entrelaçadas num hipnótico rodopio aquático que desce rumo a alguma Atlântida festiva onde fornicam peixes, eu, num redemoinho de espanto e entusiasmo, curvei-me pasmado para apreciar o espetáculo insólito. Deteve-me logo o tema da tampa, paisagem com duas palmeiras ligeiramente inclinadas em primeiro plano e um vale de pequenas colinas ao fundo. Orla do Rio: as cabeleiras daquelas palmeiras talhadas fariam sombras na tarde ensolarada de Copa, as colinas inflariam esbranquiçadas e seriam as Ilhas Cagarras avistadas do Arpoador.
Arrastadas até a linha do horizonte pelo mesmo vento que violento desenterra guarda-sóis e que brando conduz a neblina até o calçadão em noites de outono, as colinas deixavam atrás de si um abismo coberto de mar envernizado, ocre, vazio de veleiros, transatlânticos, sem rastro de escunas, espumas, ondas. Um mar repleto de fauna imaginária, convidativo.
Talvez fosse o cravo alucinógeno, pois além de ver a caixa como a Terra, com suas placas tectônicas de madeira incrivelmente separadas pela atividade eólica, a cada inspiração eu acreditava mais e mais estar ouvindo sons que embalam um semi-sonho na canga: o cochicho das rodinhas, o chiado da maré quase alcançando o pé, brados estapafúrdios de vendedores ziguezagueantes, o ronco das motobombas das duchas e dos monomotores no céu. E para minha surpresa, ao pressionar a janela do ouvido percebi que, como se na areia eu estivesse, a freqüência do som agravava, som de tudo aparecendo sonífero. Cessei de pressionar, e então ouço um derradeiro “Alô água! Alô mate!” antes de ser engolido por um fabuloso e infundado caixote, com o qual não me importaria, caso viesse ao fim de um bem sucedido jacaré kamikaze. Ergui-me, enchi meus pulmões de maresia que dissipa remorsos e mergulhei na conveniente melancolia das tardes turvas no mirante do Leme, quando, aéreo, vejo leveza nos canhões do Comando Militar na outra ponta da praia e cogito ser um pescador ocasional, usando meu boné de banco falido e minha camiseta regata carcomida, com meu maltratado baldinho bege cheio de iscas de sardinha ao meu lado, minhas gírias do métier marinho na boca, minhas latinhas de cerveja na sacola térmica, entretido na brisa oceânica, assobiando canções.
Nada como minha fantástica realidade financeira para murchar meu desvario. Eu talvez nunca comprasse a tal caixinha, eu que havia visto nela, desde o primeiro encontro (uma topada num belo exemplar, anos atrás, quando vagava em outro antiquário à procura de um baú), um continente mágico, metamorfoseando conteúdos mil em tesouros atemporais.
Eu flutuava anacrônico no vapor de incenso, em meio às antiguidades, ao largo do trânsito infernal, apreciando o desfile dos terráqueos no aquário que era a praça coberta da galeria: o cardume de caixas do Pão de Açúcar com seus rabos de cavalo a balançarem feito ponpons de hipotéticas hipocampetes, o pivete despistando o tira com a destreza de uma enguia aflita, a escada espiral feito fóssil de concha de nautilo. Foi quando vi Amanda, lá fora, admirando-me como se eu fosse um curioso peixe ornamental abrindo e fechando a boca, coçando meu queixo de escamas. Acenei. Ela acenou e riu.
Andamos até a rua. Calor dos infernos. Peço um açaí na lanchonete:
- Me vê um açaí no copo, pra viagem!
- É com tampa?
- Não, não precisa...
- Então não é pra viagem!
Mas, transbordando de pedidos, a garçonete esquecera de fazer jus à sua interessante colocação, e me entregara o copo com tampa e canudo, como se fosse um suco. Destampei, e por minha vez, desatento às lixeiras laranja que passavam, andei com a tampa e o canudo entre os dedos. Amanda estava agitada, parecia a palmeira solitária da cobertura de um edifício no Leme, que, não sei por que cargas d´água, me comove, quando a vejo, da rua, feito uma anêmona do mar à mercê das correntes, descabelando-se ao vento. Tinha desmanchado com o Rubens: “Era um pra cada lado e o marasmo no meio”, disse. Pensei no tempo que afasta a graça de uma gíria batida, enquanto meu açaí derretia no copo de plástico. Conversamos à beira mar, ora futuristas felizes, ora empurrados pela pesada mão dos fatos para um lamentável caldo de reclames. E quando, para descontrair, eu lhe contava já ter visto três saltos de arraia na Barra, coisa que ninguém acreditava, um ultraleve sobrevoou o mar, levando uma faixa com estas palavras em fundo branco: “Amanda, eu te amo! Volta. Rubens.” Ela riu, eu ri e anoiteceu.
Na manhã seguinte, volto ao antiquário, à procura da caixinha. Dentro dela, uma fotografia em preto e branco: equipado com pés de pato e óculos de mergulho, um jovem exibia na palma da mão uma admirável concha espiralada. Na boca, um sorriso desangustiado. Ao longe, o Rio de Janeiro, e no canto da foto, uma data: 1969. No verso, algumas anotações em caligrafia impecável. Cocei meu queixo ao ler:
Reencontrei a concha nos escuros corais
2 comentários:
foto: urbanspace! foda!
mergulho: lindo e gostoso, emocionante. amo.
bonito pra caralho.
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