Às margens do Posto Ipiranga chovia uma chuva nem fina nem grossa, irritante feito chiado em fita k7 a ser transcrita por um estagiário mal pago numa tarde ensolarada. Dois frentistas já desuniformizados aguardavam o céu cessar seu pranto de araque. De boné e sobretudo creme, os dois conversavam sobre o trajeto dos ônibus no subúrbio. Altas discordâncias: “esse buteco não fica nessa rota, eu sei porque já fui lá e morri mil vezes esperando essa porra de 232”.
Nosso personagem atravessa a avenida, mas não sem antes ser premiado em contra-plongée com uma senhora ducha de água da poça, executada com perfeição por um Gol azul escuro e prateado, lhe pareceu, enquanto sua boca lançava uma praga esfumaçante que atravessava as gotas apressadas para espatifarem-se na ciclovia.
Não nos acabe aqui indagar porque raios o cara da mala preta e casaco de lã preto, com gotículas desequilibrando-se nas pontas felpudas, apareceu naquele instante todo molhado atravessando a rua, se dirigindo ao posto, passando ao lado dos frentistas. Ou cabe, se assim quiserem, pois afinal de contas ele é um personagem de preto, a cor do suspense, afirmariam alguns, dispostos a teorizar o luto.
O fato é que ele tinha mais de um real no bolso, não sabemos se todos em moeda nem se guardados para entornar litros de café expresso em postos de conveniência. Parou em frente à máquina, apertou o botão do cappuccino, esperou, ajeitou o cabelo esboçando um assobio sombrio, pegou o copinho e pôs-se a bebericar. Eu já havia tomado um daqueles pouco antes e sabia que aquela beiçada cautelosa e demorada não se devia à temperatura do café, que já saía morno da máquina. Matava o tempo.
E lá estava eu a estudar o sujeito de preto com mala preta assassinando friamente o tempo e tomando seu cappuccino morno quando me entra pela porta automática uma cinquentona serelepe com uma sapatilha dourada na mão direita, e a outra no pé esquerdo. Bem, isso foi o que primeiro chamou minha atenção, mas como em anúncios de lingerie, nos quais nosso olhar adequa-se rapidamente ao percurso sexo-rosto-rosto-sexo, e como o primeiro ítem não seria realmente uma meta para meus olhos diante da senhora encasacada, subi-lhe os olhos pela saia estranha e violeta, passei pelo casacão peludo chegando-lhe aos óculos escuros. Logo os deixei de lado, pois pendentes, não escondiam os olhos azuis, nus, puro mar agitado de delírio, que se esbugalharam em sincronia com a boca:
- Não quero a bunda da Carla Perez! Eu deteeesto favelado! Tenho nojo!! Ouviram???...NOJO!!
E então nossa personagem semi-descalça, agora indiscutível protagonista, espalma a mão violentamente no balcão e joga uma nota de R$ 100. A outra sandália já estava na mão do segurança do posto, que pelo sorriso de telespectador dominical diante do programa humorístico preferido, conhecia bem o enredo, e a seguia, com a mão no seu ombro, anunciando num tom gaiato aos amigos: “Ela quer um cigarro e o resto em cerveja...” Ela era como Gena Rowlands em Opening Night, todos a esperavam, ela era o show, sem ela não haveria espetáculo. E ela continuava, espalhafatosa, para alegria dos funcionários:
- Eu moro sozinha numa cobertura fantástica aqui do lado, ganho quinhentos mil por mês!!! Faço o que quiser!!! E vocês?? Não sou que nem essa loira bunduda!!! Detesto favelado!!!
Do lado de fora, saía o camarada da mala preta, observado pelos dois frentistas, que a esta altura já discutiam como eram construídas as espaçonaves e quando finalmente chegaria a hora dos fiéis irem pro espaço. Desviando um pouco o curso da conversa, um deles comentou:
- E esse aí, entrou de preto, saiu de preto e voltou pra chuva...
Aparício Modesto
quarta-feira, maio 30, 2007
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