Estela gostava de pintar suas unhas das mãos e dos pés de vermelho. Toda vez que saia do salão de beleza se sentia mais bela. Estela não tinha cuidados especiais com seus cabelos. Aparava-os três a quatro vezes ao ano, quando achava necessário. Não pintava e não fazia nenhum desses tratamentos, hidratações ou escovas que viraram coqueluche nos últimos anos. Freqüentava o salão de beleza unicamente com a finalidade de pintar suas unhas dos pés e das mãos. Sempre de vermelho.
Toda sexta feira quando saia do salão de beleza, fumava um cigarro e tomava um café num café bem freqüentado do bairro de Ipanema. Estela só bebia café nesse café às sextas feiras porque quando saia do salão de beleza com suas unhas vermelhas se sentia mais bela, tão bela que se achava capaz de ganhar o mundo e, para Estela, o primeiro passo para se ganhar o mundo era tomando um café num desses cafés bem freqüentados do bairro de Ipanema.
Estela achava lindo fumar cigarros de filtro amarelo, principalmente Marlboro caixa. Quando Estela se sentava à mesa da varanda de um desses cafés bem freqüentados do bairro de Ipanema, enfiava a mão em sua bolsa em forma de saco e dali pescava um box de cigarros de filtro amarelo. Ao retirar a mão do saco se deliciava com a imagem de suas mãos brancas de neve segurando a caixinha branca e vermelha do cigarro. Metodicamente abria a caixa, tirava um cigarro e acendia-o. Estela degustava o cigarro sem tirar os olhos de suas mãos e de seus dedos. Estudava cada movimento seu. A maneira como segurava o cigarro, a ponta do filtro amarelo entre seus dedos indicador e maior de todos. As unhas gritando escarlates na proximidade do filtro. A fumaça em desenhos coreografados dissipando-se no ar. Era então nesse momento que Estela se transportava e de repente aquelas mãos não eram mais as mãos de Estela em Ipanema. Estela não era mais Estela.
Quando, às sextas feiras, saia do salão de beleza e sentava num desses cafés de Ipanema para ganhar o mundo e fumar um cigarro admirando suas mãos brancas de neve em contraste com as unhas vermelho escarlate, Estela se transportava para um outro lugar. Um lugar que só existia em sua cabeça. Uma junção de retalhos de imagens, sons e descrições de filmes, gravuras, fotos e musica que ela ouvia desde pequena e da qual ela gostava muito de pensar e chamar de Paris.
Às sextas-feiras Estela saia do salão de beleza se sentindo mais bela com suas unhas vermelhas e num café bem freqüentado do bairro de Ipanema acabava parando em Paris.
O lugar na cabeça de Estela toda sexta-feira não era muito bem Paris. Estela nunca havia estado em Paris, nem em nenhum outro lugar da Europa. Apenas conheceu a Disney ainda bem pequena e esteve em Buenos Aires quando completou seus quinze anos. O resto do mundo só conhecia de filmes vistos em algum cinema do grupo Estação ou em casa, em dvds alugados na Cavídeo depois de meia noite. A Paris de Estela estava em salas de cinema do bairro de Botafogo, em prateleiras de uma locadora no Humaitá e nos devaneios de Estela diante à xícara de expresso às sextas feiras em Ipanema.
Estela chamava o lugar de seus pensamentos de Paris porque tinha indiscutível preferência pelos filmes franceses e achava o idioma muito elegante, apesar de não entender nem falar uma palavra da língua. Estela gostava de filmes ambientados na cidade, mas se derretia mesmo pelas fitas protagonizadas por Alain Delon ou por Belmondo. Achava as duas estrelas, cada um a sua maneira, símbolos perfeitos de um homem ideal. Quando pintava suas unhas de vermelho, gostava de pensar que era também uma estrela e que vivia em par romântico com seus astros favoritos dentro de filmes que ela se gabava de ter visto mais de vinte vezes como About de Souffle e Plein Soleil (Estela recusava-se a chamar seus filmes favoritos pelo título traduzido. Quando alguém lhe perguntava sobre Acossado ou O Céu por Testemunha, fazia cara de desentendida até simular compreensão e referir-se ao filme pelo título original, sempre se desculpando, em falsa modéstia, por desconhecer o nome dado em português).
Estela se sentia mais bela às sextas-feiras, mas conforme os dias da semana iam passando uma tristeza de dar dó se apoderava dela. Nos fins de semana Estela só saia de chinelinhos ou sandálias bem abertas a fim de expor seus pezinhos de unhas vermelhas. Já havia, inclusive, arranjado um namorado que tinha fissura por seus dedinhos escarlates separados pelas tirinhas de suas chinelas praianas. Mas o namorado não era nenhum Alain Delon e Estela logo se cansou daquela adoração exagerada aos seus pezinhos. Estela dispensou o namorado andando por três semanas consecutivas com um velho all star e despindo os pés somente em seu quarto para o deleite dos múltiplos olhos azuis de M. Delon estampados pelas quatro paredes. Assim que o namorado chato por seus pés parou de ligar, voltou a desfilar aos fins de semana com suas sandálias abertas apesar de sua alegria sempre ter data para acabar.
Conforme os dias da semana iam passando, Estela ia substituindo seus chinelinhos por sapatos mais fechados. Quando chegavam as quintas feiras, só ia trabalhar de tênis e com uma enorme vergonha das mãos brancas de neve. Quando chegavam as quintas feiras, recusava-se a fumar cigarros em público e fazer devaneios. Quando chegavam as quintas feiras, era uma mulher mais triste.
Mas as sextas feiras também sempre chegavam e mesmo que não fosse encontrar ninguém e soubesse que iria passar o fim de semana trancada sozinha em casa, Estela pintava suas unhas de vermelho. Sempre para ela e para o Michel Poiccard que a esperava em close na parede de seu quarto com um cigarro na boca e um olhar marotamente romântico. Michel Poiccard sabia admirar as unhas escarlates de Estela e era para ele e para o Ripley de Delon e para tantos outros sonhos que começavam no café bem freqüentado do bairro de Ipanema que Estela entrava toda sexta feira no mesmo salão de beleza e saía se sentindo mais bela com suas unhas vermelhas.
Se aquele aumento saísse Estela poderia pintar as unhas duas vezes por semana. Ela mal podia esperar para não ter mais as quintas feiras de melancolia quando escondia suas unhas já sem brilho, e às vezes até mesmo descascando, de seus amigos e de seus amantes de papel em close na parede de seu quarto.
B.K
quinta-feira, abril 19, 2007
Assinar:
Postar comentários (Atom)
3 comentários:
As unhas escarlates de Estela se estatelavan à tela de aranha.
Nao importa.
Estela está.
Barabara, te encontrei no Orkut porque lembrei muito de você com um livro que eu tô lendo. Chama-se Sombra do Vento, de Carlos Ruiz Zafón. Lembrei de você porque tive muita vontade de ir "à página 39" se eu quisesse que o mocinho entrasse na casa abandonada, ou ir "à página 52" se eu quisesse que ele virasse Estela.
Grande beijo,
Flávio
lindo.
Quero ser um pouquinho Estela.
cheguei aqui pela andrea capella, links de links. me senti meio humaitá-botafogo, café-marlboro (mas prefiro a prefácio) e mãos brancas de neve. hoje estou em paris. faz duas semanas que pintei as unhas dos pés; hoje faz + de 20 graus e sol.
Postar um comentário