quinta-feira, janeiro 25, 2007

OS ACASOS E A TERNURA PARTE II

Dezembro 2006

João não voltou, meu computador entrou em colapso, não fui ao show do caetano, graças a deus não tive que pegar nenhum avião. Dezembro voou entre meus nervos à flor da pele revendo cassavetes no ccbb e a possibilidade de uma calma desejada ao longo de todo ano sendo finalmente encontrada no canto dos pássaros da mais bela árvore de uma rua do cosme velho. Enquanto isso o resto de minha querida e triste cidade agonizou mais uma vez.

Em dezembro eu me calei diante desses acontecimentos que preencheram meus dias. Em dezembro eu simplesmente vivi deixando o pescotexto de molho (na verdade marinando a fim de pegar sabor para o ano que se abriu). Inaugurarei, portanto, minha participação autoral em 2007 relatando duas cenas pescadas por meus olhos nesse volumoso mês de dezembro.


O MENDIGO DANÇARINO DA BARRA DA TIJUCA

Eu moro na Lapa, minha mãe mora na Barra da Tijuca. As distâncias são tão grandes (física e filosófica) que às vezes passamos meses sem nos ver. Trabalhando por aquelas bandas minha mãe não tem absolutamente nada o que fazer no Centro, e como suas horas são todas preenchidas no escritório da esquina de sua casa pouquíssimas vezes ela tem a chance de dar o ar de sua graça em bairros da zona sul. Eu não tenho nada o que fazer na Barra. Absolutamente nada, a não ser visitá-la nos fins de semana em que ela não precise ficar enfurnada no escritório a mercê dos imprevistos. Quando isso acontece é praticamente uma viagem que me proponho fazer. Arrumo uma mochila com artigos básicos de higiene, um pijaminha, um bom livro e me encaminho para a jornada de uma hora e meia de ônibus até a moradia de minha mãe.

No primeiro fim de semana de Dezembro fui visitá-la. Passamos dois dias fofocando, comendo besteiras e vendo a primeira temporada de Dallas em dvd. Domingo chegou rapidamente e eu comecei a me preparar para a jornada de volta. Tinha hora para chegar na Primeiro de Março, nesse domingo iria ser exibido Faces no CCBB e eu não poderia perder isso por nada do mundo. Despedi-me de minha mãe garantindo as felicitações de boas festas – as distâncias entre nossos dois mundos poderiam fazer com que não mais nos encontrássemos em 2006 – e parti com minha mochilinha para o ponto de ônibus mais próximo (na Barra isso já é o começo da aventura).

A uns dez metros do ponto, percebi que no chão encostado a um poste que tem agarrado em seu corpo uma dessas pequenas latas de lixo laranja, jazia abandonado um par de sapatos semi novos. Não era um par de sapatos qualquer. Eles pareciam ser de couro, com cadarços, mas não eram sapatos sociais regulares. Seus bicos eram ligeiramente mais finos que os normais e eles possuíam pequenos saltos. Minha bagagem cultural infelizmente me impossibilita precisar com exatidão para que gênero específico eles serviam, mas com certeza posso afirmar que eles não eram sapatos de andar, de simplesmente estar. Aqueles sapatos esquecidos na boca do lixo eram indubitavelmente sapatos feitos com a única finalidade de dançar. Lembro-me que ao olhar de relance o abandono deles fantasiei o tipo de pessoa que teria largado-os ali daquela maneira. Eles não estavam dentro do lixo, eles estavam cuidadosamente no chão. Mas indiscutivelmente a posição deles (embaixo de uma lixeira de poste entre o nada árido da Barra da Tijuca e um ponto de ônibus solitário) não trazia sombra de dúvida que aqueles sapatos haviam sido deixados lá por abandono. Eles não estavam guardados, tampouco pareciam ter sido simplesmente esquecidos como um guarda chuva ou uma sacola de compras. Eles haviam sido abandonados de propósito ainda que não estivessem sido despejados na lata de lixo. Os sapatos estavam expostos e isso me pareceu deveras peculiar. Tudo isso me passou rapidamente pela cabeça, mas logo a ansiedade do tempo correndo fez-me concentrar no desejo de que um ônibus que me servisse chegasse logo, e na busca de alguém com fósforos para acender meu cigarro.

Nenhum ônibus para o Centro passava, meu cigarro virava apenas uma guimba amarela, minha paciência se esgotava, quando avistei vindo na direção do ponto um mendigo maltrapilho. Cabelos e barba longos, sujos e grisalhos; vestindo uma calça inteira na perna direita e rasgada como um shorts na perna esquerda, uma longa camiseta que em algum dia distante já havia sido de cor clara e calçando um tênis também bastante velho mas menos carcomido que o resto da indumentária , o mendigo andava a passos de passeio na minha direção. Possuía um ligeiro ar louco mas não aparentava estar sob o efeito – ao menos exagerado – de nenhuma cachaça. Não saberia dizer da onde ele havia saído, apareceu no meu campo de visão assim como um barco surge de repente na linha do horizonte e suas proporções cresciam conforme se aproximava.

E assim veio vindo atéé a altura do poste em que os sapatos abandonados descansavam. Ali, diante da visão e curiosidade suscitadas em mim momentos antes, ele parou. Mas enquanto aqueles sapatos apenas me aguçaram momentaneamente a imaginação, no mendigo tiveram efeito muitíssimo maior. Seus olhos não acreditaram no que viram. Ele parou diante dos sapatos e muito lentamente começou a se ajoelhar. Era um misto de reverência e cautela (como se os sapatos pudessem da inércia vir a dar-lhe um bote fatal). E com muito cuidado o maltrapilho pegou os sapatos e carinhosamente os analisou. A textura do couro, a flexibilidade da sola, a maciez do interior. A cada toque de seus dedos nos sapatos uma nova expressão de satisfação se fazia no rosto surrado. Ele acabou se deixando cair no chão, sentando-se com as pernas abertas. Rapidamente se livrou do par de tênis que calçava, e que nem estavam assim tão maus, e se pôs a experimentar os sapatos de dança. Os sapatos eram visivelmente menores que seus pés mas isso não bastou para que o pobre coitado desistisse. Pressionando o pé contra o bico e usando de força e da ajuda de todos os dedos da mão o mendigo conseguiu enfiar um e depois o outro pé em cada um dos sapatos.

Engraçado foi o efeito que a visão daquela criatura calçando outro par de sapatos teve sobre mim. Parecia realmente se tratar agora de uma outra pessoa, o corpo e os gestos do maltrapilho eram outros como se os sapatos exercessem algum poder mágico de modificação de personalidade a quem os vestisse. Com uma áurea de classe, e certa dificuldade no equilíbrio, o mendigo se levantou e de pé se pôs a analisar sua própria figura. Primeiramente ele começou a marchar, sem sair muito do lugar, parecendo querer fazer sua nova aquisição se assentar em seus pés. Mas ao pressionar com força um pé depois o outro contra o chão, seu corpo parecia leve. O movimento tinha em si uma certa graça que surpreendentemente me remeteu a Fred Astaire num começo de alguma espécie de numero musical dos esquecidos. Em seguida o mendigo arrancou parte da perna direita de sua calça, transformando a peça de roupa inteiramente em shorts. A cena ficava cada vez mais interessante. Os pés apertados dentro dos sapatos, as pernas de fora valorizando inteiramente os pés, a alegria brejeira do maltrapilho cinematográfico. Era tudo tão esquisito e ao mesmo tempo gracioso que parecia invenção.

O mendigo voltou a se abaixar, pegando seu velho, ainda que mais confortável e adequado, par de tênis, e os colocou no mesmo lugar e da mesma maneira que antes se encontravam os sapatos de dança. Antes de partir reverenciou os velhos sapatos, como quem dá adeus desejando boa sorte e tomou o seu rumo, que não era mais o da minha direção. O mendigo pôs-se a voltar da onde estava vindo mas agora sob o som imaginário (que tocava na minha cabeça, e com certeza na dele também) de alguma orquestra em um movimento de cordas. Pela primeira vez vi a paisagem árida da Barra da Tijuca como cenário de musical cinemascope enquanto o maltrapilho sumia levemente no horizonte em plano geral.

CONTO DE NATAL PARA DOIS PIVETES NO FLAMENGO

Vinte cinco de dezembro, dia de natal.

Havia passado a véspera de natal satisfeita de passar sozinha em casa. Minha mãe estava em Vitória e alguns amigos, por compaixão natalina chegaram a me convidar a cear com suas famílias. Recusei aos primeiros chamados sem culpa, mas um certo olhar de pena que sempre vinha da parte do anfitrião começou a me fazer mal o suficiente para eu cair na armadilha de sentir uma profunda dó da minha condição de solitária em data tão significativa, me fazendo quase aceitar a acolhida de qualquer casa que me servisse peru, quando um trampo comodamente apareceu e me deu a desculpa necessária – e muito oportuna, meu presente de natal- para declinar os convites. Assim pude passar esse dia, que nunca me disse muita coisa, no aconchego de meu apartamento revisando as páginas para um catálogo de mostra de cinema em troca de uns trocados muito bem vindos no final de um ano magro de grana. Já havia me comprometido a passar o dia de natal almoçando um bacalhau no apartamento de meu tio, em Ipanema. Esse programa era algo relativamente agradável já que meu tio também não tem muito apreço por essa data e estar em sua companhia sempre rende boas conversas.

Acordei por volta do meio dia, preparei um café, me arrumei, dei uma última lida no texto e fiquei esperando pegarem o material já que o trabalho havia sido encomendado em caráter de urgência. Trabalho cumprido, preparei minha bolsa e tomei o primeiro ônibus que passou para a ensolarada Ipanema. O veículo estava mais ou menos vazio, nos poucos acentos ocupados sentavam-se pessoas que pareciam ter destino similar ao meu, encontrar a família para o tradicional almoço de natal.

Ali pela Gloria o ônibus parou em um ponto e eu escutei a voz de dois moleques que perguntaram ao motorista de maneira até bem educada se podiam pegar uma carona. O motorista respondeu que como era natal eles podiam sim entrar no ônibus sem pagar, mas avisou-lhes que estaria de olho em seus comportamentos. Só havia família no ônibus e o motorista não queria confusão. Os moleques alegremente acataram a condição e entraram em alvoroço pela porta de trás. Dei uma espiada e prontamente entendi a razão do discurso do motorista. Os meninos eram nitidamente dois pivetes de rua. Eu sei que parece um tanto preconceituoso tecer essa análise em uma única observação, mas nada no ar dos garotos depunha ao contrário dessa precipitada constatação. Um deles usava um chinelo velho e uma bermuda nova um tanto colorida alguns números maior que seu manequim. O outro, pelo contrário, usava bermuda quase em farrapos mas em compensação trazia nos pés um tênis semi-novo. Um tênis desses que as pessoas, normalmente, adquirem por tanto quanto, ou até mesmo por mais, que um salário mínimo em lojas bem claras dentro de shoppings centers. Em volta do pescoço de ambos cordões dourados adereçavam os peitos sem camisa.

Senti em volta a preocupação de algumas das pessoas que ali estavam. Uma menina na minha frente tratou de se agarrar à bolsa. O casal do lado se abraçou de forma que o corpo inteiro do rapaz protegesse sua companhia. Eu voltei a minha concentração para o livro leve em que mistérios sherlokianos prendem somente a atenção torcendo para que os dois moleques tivessem ao menos palavra e se comportassem ao longo do trajeto. Os minutos se passaram junto às paradas de ônibus e o ambiente em pouco tempo voltou ao sossego. Os dois meninos alojaram-se nos bancos de trás e mantiveram-se em silêncio enquanto os passageiros aos poucos se esqueceram do perigo da ameaça.

O ônibus cruzou toda Marquês de Abrantes com tranqüilidade até o momento em que virou em direção à praia. O ônibus parou no primeiro ponto para pegar um passageiro, mas antes do motorista dar continuidade ao caminho, os dois moleques se levantaram e um deles pediu em caráter de urgência, mas de maneira jovial e malandra, para que o “tio piloto” deixasse-os saltar. O motorista atendeu ao pedido abrindo a porta e um segundo de suspiro de alívio se alastrou pelos ares. Os pivetes iriam sair sem causar dor de cabeça, sem lesar ninguém. Na consciência traída pelas expressões de alguns passageiros vi se implantar um tiquitinho de culpa, de repente eles eram mesmo só dois adolescentes sem grana querendo curtir um natal de sol na praia. É impressionante como vários sentimentos podem surgir em um lapso de segundo. Ainda mais quando no segundo seguinte todo esse sentimento cai por água abaixo. Pois foi que logo quando todos aproveitavam o final do suspiro de alívio, lá fora uma moça sentada no ponto de ônibus gritou: “minha bolsa!”.

O grito da loura solitária se expandiu. De dentro do ônibus achamos que era possivel todo Flamengo ouvir o lamento de socorro da menina desbolsada, mas isso não era nada mais que a concretização silenciosa de todos os nossos medos, pois o que se seguiu ao lamúrio foi a visão dos dois moleques e uma bolsa voadora atravessando bravamente todas as pistas, se desviando de todos os carros, caminhões, motos e ônibus. Um jogava a bolsa para o outro numa coreografia que lembrava um jogo de basquete, sem os quiques de bola naturalmente. Os dois riam e caçoavam. A bolsa flutuava de uma mão a outra, às vezes cruzando um veiculo intrometido que se metia entre eles em alta velocidade. Os pivetes agora eram só crianças com seu presente de natal. Eles haviam acabado de provar que podiam ser bons meninos comportando-se exemplarmente no ônibus mas sabiam que mesmo assim não havia nenhum Papai Noel para recompensá-los por absolutamente nada digno que lhes dessem na telha fazer, então resolveram correr atrás de seu prêmio natalino, que, dizem as propagandas, todas as crianças tem direito, e rumaram em direção à praia.

O ônibus partiu deixando a mulher no ponto desamparada. Dentro dele os passageiros comentavam o absurdo que estava o Rio de Janeiro, o absurdo de não haver policiamento nas ruas em pleno dia de natal, o absurdo que era os marginais não respeitarem nem um dia sagrado como esse, o absurdo de não termos segurança para sair de casa, o absurdo desses moleques não estarem trancafiados em alguma instituição.

De repente, tudo era um absurdo.

Mas o que realmente me tocou foi a desabsurdez da tristeza e da culpa que prontamente o motorista assumiu. Totalmente arrependido da boa ação que fizera ele se lamuriava muito conscientemente de ter sido tão otário e clamava aos céus por clareza e discernimento em seus próximos julgamentos com o outro. Não se pode confiar, não se pode acreditar, não se pode achar que um ou outro é igual a você porque você idiota achou um dia que em todos os dias e não somente hoje deveríamos ser todos iguais. Quem disse?agora já sei, agora aprendi a lição... ninguém entra mais assim no meu carro... ahhhh, ninguém!

Não valia mais à pena ajudar o próximo, nem mesmo no dia de nascimento de Jesus. Senti uma profunda pena do piloto que não parou com seu choro aflito até me deixar no Jardim de Alah. Ao longo do trajeto restante, entre um e outro desabafo murmurioso do condutor, eu fechei meu livro, fechei meus olhos e simplesmente me vi numa obsessão de lembrança que me remetia aos olhos brilhando e ao sorriso na cara de cada um dos moleques, abraçados à bolsa, se desviando dos carros, sob céu extremamente azul do verão carioca, com o pão de açúcar em cartão postal prostrado ao fundo e eles, meninos, lá, correndo como meninos devem correr, resistindo, livres.


Barbara kahane

2 comentários:

Anônimo disse...

achei maravilhosos os seus contos, muito poéticos.

Anônimo disse...

Por que nao:)