sábado, dezembro 30, 2006



Eu esperava já ter desencalhado parte do trabalho quando a obra do corredor voltasse a me atasanar. Ela, que começa sempre a manhãzinha num sprint de reta final, me acordou num solavanco de pálpebras abertas para o teto recém-pintado de branco meio bege, insolente e abusada como um copo quebrado na testa provocativa de um interlocutor mamado, que implode então, numa quebradeira imprópria, a aliviadora primeira rodada da patota pacífica no serão do buteco. Sou flamengo, na esquina tem outros mil, e segundo o matemático Oswald de Souza, ninguém no mundo gosta de acordar na tensão de ter de passar o bastão numa final de olimpíada. Forçando a barra para um sentido aleatório, o estádio lotado aplaudindo o lanterninha manco ofegando seria como o delírio otimista e lacrimoso das festividades condenando violentamente o degenerado mal humor irônico dos alheios à festa de fim de ano. Despertei de três mal dormidas horas de sonhos imprestáveis, tendo o primeiro bocejo do dia interrompido ao arranhar a ilharga seca do indicador na remela petrificada no canto direito do olho esquerdo. Pûs puto os pés no chão de taco frio e entrevi o tempo antipático atrás da persiana de pontas tortas, fui até a cozinha e distraído enchi de prazer o hábito de encher a xícara preferida de café negro esfumaçante. Aguardo agora a mediocridade costumeira das associações subjetivas dar seu estalo de artifício, ao olhar a pequena antena preta do wireless, o winamp e o bico amarelo do hollywood pendente do maço pela metade. É quinta. Aguardo talvez que a parafernália que me cerca coberta de fina poeira do ar da obra sopre uma cola, que venham dela sementes de sumaúmas gigantescas colonizar a terra remoída do dia nublado que não parece iniciar-se sintonizado nas máximas otimistas em voga às vésperas da virada, mas sim atrelado à lenga-lenga irritante das desatenções, sussurando-me gráficos em braile que quero dos objetos tolos: alguns rascunhos legíveis e inspirados, ou uma leveza providencial. Mal humor e preguiça matinais: adoraria poder dizer que os franceses, os ingleses ou os pré-colombianos tem uma palavra perfeita para descrever tal estado: “….” Bode. Besteiras mil, nem sempre é assim. O choque da partícula Jacques Aumont com a partícula Roland Barthes num acelerador de sacadas traz brilhantes strikes do Virilio sobre o porque do sitar sem nexo. A obra não me deixa pensar. É quase sempre assim. Ontem à noite o trabalho estava atolado, melhor dizendo, acorrentado às musas exterminadoras do céu de praxe, quando puxei um livro da estante para provocá-las. Uma espécie de "aperta que ela peida" invertido, uma estratégia prenha de jogadinhas de namorico insano. Eu e meu livro numa mão, enquanto a outra levanta a barra da saia do travesseiro para encostá-lo ao outro canto da cama, e debaixo dele vem voando uma barata cascuda. É verão, eu já a esperava, a safada musa aparecer.


Aparício Modesto

Um comentário:

Anônimo disse...

tem umas pequenas pérolas aqui, einh? muito bom fluxo...
prometo passar de vez em quando. tri bom.