Teresa era do tipo moleca. No recreio preferia acompanhar os meninos que sempre a entretiam e a faziam rir com os piques pegas polícia ladrão ao invés de brincar com as meninas acostumadas a ninar num canto melancólico e entediado suas filhas de vida de plástico e pano. Na janela da casinha de bonecas do pátio da escola, Teresa invariavelmente encontrava um rosto triste de menina mirando um horizonte inexistente em tom de grave expectativa. Elas gostavam de imaginar que cuidavam da casa enquanto seu príncipe ia trabalhar. Mas o príncipe nunca voltava para ninguém e as poucas vezes que Teresa pagou para ver, o sinal anunciando o fim do recreio foi mais rápido e Teresa subia as longas rampas que levavam a sala laranja da tia Ângela sentindo que havia perdido um tempo precioso de sua vida.
Teresa dividia uma grande paixão com os garotos. Desde quando se lembrava carrinhos de brinquedo balançavam seu coração como nada ou ninguém era capaz de fazer. Um amor adquirido de seu pai que nos poucos anos que morou junto a ela e sua mãe tinha tido uma estante com a coleção mais fenomenal que Teresa já vira. Uma coleção de mistérios pois Teresa era terminantemente proibida de chegar perto do tesouro de seu pai. E nos fins de semana ela observava pela porta de vidro da sala de estudos aquele homem enorme esparramado no chão cercado por miniaturas de automóveis. Aquele homem enorme embasbacado e completamente concentrado. O mundo podendo acabar ali, naquele instante, e aquele homem enorme vulnerável a uma morte despreocupada e feliz. Teresa passou a invejar aquela felicidade almejando a coleção de seu pai como se a porção de miniaturas fosse a satisfação encarnada.
Até que um dia a casa de Teresa ficou vazia. Não havia mais homem enorme ocupando nenhum cômodo. O quarto de estudos virou o maior deserto do mundo sem nenhuma possibilidade de oásis. O pai de Teresa saiu sem deixar resquício de um dia ter existido lá. Levou a escrivaninha com todo aquele monte de papéis rabiscados. Levou os livros do descanso ao lado da poltrona e desta levou as almofadas que dizia serem de estimação. A estante ficou. Nua. Triste. Vazia.
Teresa tentava se divertir brincando que morava agora numa casa mal assombrada, pois evocar os fantasmas de seus ancestrais lhe trazia uma sensação maior de conforto do que a quase ausência de sua mãe. Desde a partida do homem enorme, a mãe de Teresa insistia em permanecer diante à janela com aquele mesmo olhar que a menina via nos rostos de suas amigas na hora do recreio quando o príncipe não voltava.
A coleção de Teresa começou quando num sábado triste de sol, enclausuramento, e tédio, Teresa foi buscar o cheiro do homem enorme no quarto vazio e, desde a partida dele, fechado. Nada a fazer em casa de filha única e mãe trancada no quarto em sábado triste de sol fez Teresa tentar no mais novo lugar supérfluo da casa a companhia de um resto de pai, já que nem os fantasmas suportavam mais a aridez de tanto deserto. Teresa sentou-se no chão de frente a estante vazia do quarto de estudos e passou a tarde lá, tentando ver se se lembrava da ordem dos carros em cada prateleira. Cada carro tinha um lugar certo dentro de uma classificação minuciosa que seu pai mantinha com cem por cento de esmero mas que Teresa nunca havia entendido muito bem. Esse era um dos vários mistérios que fazia do hobby de seu pai essa coisa tão sedutora. Teresa acreditava que no dia que ela conseguisse entender todas as lógicas das pequenas regras que sustentavam a coleção poderia finalmente decifrar o que se passava na cabeça daquele homem enorme quando ele gastava suas horas livres em silêncio dentro do quarto de estudos. Mas seu pai foi embora antes deixando Teresa a mirar uma estante vazia em tarde de sábado ensolarado. A estante dos táxis; vários novaiorquinos, vários londrinos. A estante dos carros esporte, a dos carros de luxo, a dos de corrida. Teresa tinha que se concentrar. Ela não podia errar a ordem e mais grave, ela não podia esquecer.
Quando Teresa abriu os olhos achou que ainda estava sonhando. Sua primeira visão depois do sono era em algo tão improvável que não poderia ser vida real. Ela nem bem sabia onde estava e o quanto havia dormido, mas antes de querer entender qualquer uma dessas coisas, apenas se esforçou em aceitar que diante dela, escondido e esquecido em meio a uma camada de poeira e teia de aranha, sob o pesado e agora inútil móvel de madeira, estava um belo carro vermelho e conversível. Teresa gostava dos carros vermelhos e conversíveis e por várias vezes chegou a imaginar que seu pai permitia-lhe brincar livremente com um desses. Teresa imaginava que brincava e Teresa imaginava que imaginava que dirigia um carro vermelho e conversível, enquanto seu pai, no banco de carona, deixava-a guiar os dois por onde ela bem entendesse. No mundo real, o homem enorme nunca havia aprendido a dirigir e se ao menos ele tivesse permitido Teresa tocar uma única vez um de seus carros, ela teria o conduzido a Disney, ao País das Maravilhas e a Terra do Nunca e a outros reinos encantados. De olhos abertos, Teresa vislumbrou essa possibilidade e, depois de limpa e encerada, a miniatura levou-a a lugares nunca antes explorados. O carro vermelho e conversível foi estopim para uma coleção que em pouco tempo virou o objeto de cobiça de todos os meninos do colégio. A partir desse dia se deu a transformação, a pequena Teresa se tornou a maior criança do pátio da escola.
Cada carro novo que Teresa ganhava, maior a popularidade dela ficava. A mãe de Teresa no começo estranhou a filha dar continuidade à coleção do pai a partir de um carro esquecido por ele, mas o gosto de Teresa era tanto ao manusear a miniatura abandonada que sua mãe concluiu ser uma boa idéia sustentar e incentivar a coleção. Poderia ser uma maneira de não enterrar o homem enorme que preferiu sumir do mapa fazendo com que aquele monte de carrinho trouxesse mais conforto não somente a Teresa, que a cada semana desfilava com um novo modelo pelos corredores do colégio.
Teresa se aproveitou dos mimos que sua mãe estava disposta a lhe sustentar. Em pouco tempo ela já havia preenchido uma prateleira inteira, e com sabedoria, em menos tempo ainda, fez sua coleção dobrar. Como Teresa não tinha conhecimento do valor de cada carro, o que importava a ela era que sua coleção fosse numerosa e variada. Para a mãe ela pedia os carros maiores, mais brilhantes, que pareciam mais antigos, que não havia igual na loja. Teresa usava esses critérios para garantir que dessa maneira ela teria os carros que não ganharia na rua, já que fora de casa Teresa havia criado um meio engenhoso de sua coleção crescer. A cada carro extraordinário que Teresa ganhava de sua mãe e levava para escola, ela garantia mais um membro para seu clube. E ser do clube de Teresa era passar os melhores momentos de recreio que um menino poderia imaginar. Era só doar um carro qualquer, comprado em camelô ou esquecido no fundo do armário de brinquedos velhos, para ter direito a brincar com os mais bonitos e mais caros automóveis já lançados na indústria de miniaturas ou na indústria de brinquedos. Teresa até tinha a consciência que sua coleção era bem menos criteriosa do que a do seu pai, mas o propósito dela existir era outro. Teresa se sentia muito bem observando dezenas de pequenos homens brincando de dirigir os preciosos carros de sua coleção, e essa visão a fazia esquecer por completo aquele homem enorme que preenchia seus pensamentos primeiro pelo seu mistério e depois pelo seu desaparecimento.
Teresa passou a achar que era a dona da escola, mas isso durou somente até o dia em que ela finalmente conheceu Leonardo. Leonardo era um garoto estranho, na dele, sem muitos amigos. Os meninos que rodeavam Teresa vez ou outra faziam algum comentário maldoso e mesmo tramavam brincadeiras contra Leonardo, das quais Teresa preferia não participar. Durante muito tempo Leonardo nem cheirou e nem fedeu para Teresa. Ele era apenas o garoto esquisito da outra turma. Até o dia
Teresa passou as próximas vinte e quatro horas se perguntando o porquê de Leonardo nunca a ter procurado, e tomou a resolução de no dia seguinte ir atrás do dono do estimado carrinho de madeira a fim de oferecer-lhe qualquer coisa em troca do brinquedo. Teresa estava disposta a tornar Leonardo um sócio vip de seu clube, e de manhã antes de ir para o colégio, o carro vermelho conversível, que era o único tesouro a não sair de jeito nenhum do seu lugar especial da estante, pela primeira vez, conheceu o escuro do mochilão com a fina flor da coleção de Teresa.
Mas o plano arquitetado por Teresa durante toda a noite anterior falhou miseravelmente. Ao contrário das expectativas da menina, Leonardo recusou terminantemente sua proposta e ela sentiu pela primeira vez os sentimentos de frustração e impotência. Leonardo se mostrara completamente desinteressado em fazer parte do clube de Teresa e não viu nada demais no fato dela chegar ao cúmulo de oferecer seu carro vermelho e conversível rodado em imaginação por todos os cantos do mundo em troca de apenas alguns instantes a sós com o carrinho velho de madeira. Aquele monte de carros cheios das marcas, dos truques, das belezas, das tecnologias, das potências não representava mais nada para Teresa e ela passou a não se preocupar se os brinquedos voltavam à sua mochila sem roda, arranhados ou com uma das janelas quebradas.
Teresa passou a não pedir mais carrinhos de brinquedo para sua mãe que de início viu como um bom sinal, como se a menina finalmente tivesse se recuperado da ausência do pai. Mas Teresa não se lembrava de alguma vez ter se sentido tão infeliz e enquanto os meninos destruíam sua coleção fazendo pegas, bate-bate e até mesmo pequenas explosões com as miniaturas de Teresa, ela própria gastava seu horário de recreio enfurnada na sala azul da tia Fátima observando Leonardo e seu carrinho agindo como se estivessem sozinhos, passeando por lugares que Teresa nunca havia imaginado levar seu pai.
Em pouco tempo, e com o total descaso de Teresa, seu império ruiu. Teresa não mais se importava. O melhor amigo de Teresa chegou mesmo um dia convidá-la a participar da nova brincadeira em voga no recreio. Uma variação de polícia e ladrão, mas com cowboys e robôs intergalácticos. Teresa seria nomeada a princesa dos robôs se voltasse a brincar com os meninos, mas a menina se mostrou pouco interessada. Na verdade, ela ensaiou uma empolgação ao imaginar que poderia chamar Leonardo para o bando, mas, em nome de todos os garotos, o melhor amigo de Teresa recusou a proposta dizendo que Leonardo serviria apenas como bobo da corte do reino extraterreno deles. Teresa achou a piada de seu melhor amigo de muito mau gosto e voltou a passar os seus recreios imaginando que brincava com Leonardo e seu carrinho velho de madeira.
Até que um dia Teresa entrou na sala azul da tia Fátima, quando todas as crianças exceto Leonardo saiam para o pátio, e não encontrou viva alma. Teresa ainda esperou alguns minutos cogitando se Leonardo estaria no banheiro ou na cantina mas nada aconteceu. A sala azul da tia Fátima de repente virou um deserto sem nenhuma possibilidade de oásis. Teresa conhecia bem essa sensação.
De volta ao pátio, Teresa procurou seu melhor amigo e, a fim de espairecer, juntou-se ao bando de robôs desalmados do espaço. A brincadeira era divertida, mas Teresa se esforçava demais em manter a concentração de seu papel de princesa. Sua imaginação insistia em traí-la voltando-se sempre ao carrinho velho de madeira e aos lugares que poderia conduzi-lo caso Leonardo permitisse. E agora Leonardo tinha desaparecido. Teresa bobeou em seus devaneios e acabou sendo encurralada e presa pelos malignos cowboys que iriam fazê-la de refém em troca de um oneroso resgate. Com as mãos atadas pelo gordo da sala verde da tia Cristina, Teresa se dirigiu à prisão do velho oeste que era a casinha geminada da casa de bonecas onde as meninas ainda não haviam se cansado de esperar seus príncipes. E foi nessa prisão, esperando seu melhor amigo vir salvá-la com um super raio gama beta ipisilone, que o mundo como Teresa conhecia caiu.
Enquanto aguardava sozinha e, de certa forma, satisfeita em estar num lugar sossegado onde sua imaginação pudesse voltar aos dias de recreio que havia passado na sala da tia Fátima, ouviu risos e gritos de regozijo transpassando a parede que separava seu cativeiro da casinha das outras garotas. Instigada pela curiosidade, pois sempre tinha presenciado uma brincadeira demasiadamente silenciosa daquele lado, Teresa não se conteve e resolveu atravessar as barras imaginárias da prisão colocando a cabeça pela janela vizinha a procura do que divertia tanto aquele outro grupo sempre tão estranho a ela. Foi quando, nesse momento, experimentou a sensação de que uma visão pode doer tanto que, na hora, quem avista acha que vai morrer. Esse foi o tamanho da dor de Teresa quando viu Leonardo no meio da roda das garotas com um sorriso bobo na cara. Elas lhe preparavam um banquete enquanto ele narrava suas aventuras com seu ultra mega automóvel mágico. Teresa teve vontade de gritar e alertar todas aquelas bobonas que Leonardo não era dono de nenhum super carro e sim de uma carroça suja, velha e frágil. Teresa amava aquele carro velho exatamente por causa disso. Teresa queria mais do que tudo aquele carro como ele era, velho e de madeira. Mas ninguém nunca iria acreditar nela. As garotas olhavam para o carro de madeira em cores desbotadas no colo de seu dono e viam algo mágico e extraordinário. Leonardo fez as garotas esquecerem que príncipes encantados existiam e Leonardo estava feliz gabando-se de feitos que Teresa nunca imaginara que ele fosse capaz de realizar. Tantas horas de silêncio na sala da tia Fátima tentando entender o que se passava na cabeça de Leonardo e ele, agora, ali, rindo e gabando-se. Teresa se sentiu a boba da corte do reino de Leonardo e não pôde fazer nada contra isso.
Quando o melhor amigo de Teresa chegou para salvá-la a raiva dela era tanta que com apenas dois disparos de seu potente laser dizimou a comunidade dos bandidos faroeste por completo e, mesmo sendo aclamada durante o resto do dia por toda horda de robôs, só conseguiu pensar em chegar logo em casa, se trancar no quarto de estudos, e chorar até se afogar nas próprias lágrimas.
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