terça-feira, outubro 31, 2006

OS ACASOS E A TERNURA


Quando vi que D. era um homem diferente depois de ter lido Crime e Castigo e Os Irmãos Karamazov, não sei muito bem porque, meu coração se encheu de ternura. Estávamos na casa de veraneio de M., e D. trazia tatuado em seu pulso o nome Aliocha. Naquela época ele lia Humilhados e Ofendidos e resolveu externar sua profunda admiração pelos personagens escrevendo na pele com canetinha preta um nome usado por Dostoievski em alguns de seus romances. Nunca havia visto em D. uma atitude em que a emoção subjugasse a razão de maneira tão direta e aquilo, mesmo sendo uma brincadeira, me comoveu imensamente.

Nesse mesmo dia e lugar, conversando a respeito das correções em anzol e isca pra ver se texto com A. e F, e sem conseguir tirar os olhos do Aliocha do pulso de D, me veio essa idéia de listar fatos únicos ou rotineiros que acontecem quando eu menos espero e que me aterram numa avalanche de ternura. Para esse texto, em particular, listei três historias de situações escolhidas a partir de alguns tipos de casualidade que presencio com certa freqüência.

VELHOS SENDO VELHOS EM AMBIENTES NOVOS - não existe lugar mais comum do que se emocionar com pessoas idosas. Essa condescendência que as pessoas velhas inspiram é algo que a priori me irrita. Não acho que alguém mais velho seja necessariamente mais sábio; salvo exceções. Muitas vezes encontramos anciães que nem mais experientes são e sua longevidade não denota mais do que uma excessiva cautela em relação aos percalços da vida. Mas mesmo assim, ver um tipo desses tradicionalmente velhinhos - e que os novos tempos estão extinguindo pelo policiamento cada vez mais agressivo por uma busca de jovialidade eterna – tentando se adaptar a uma situação deveras nova, me encanta.

No dia dos pais de uns três anos atrás, F. me convidou para almoçar com sua família num quilo do Catete. Aceitei de bom grado, com pais morando fora esses dias são sempre solitários. Chegando ao restaurante, servimo-nos e sentei de frente a F. que não tardou a entrar em um papo de cunho familiar que não me dizia muito respeito. Comecei, aos poucos, a deixar de prestar atenção no que F conversava com sua mãe, pai e irmã e passei a me concentrar na observação dos tipos que lotavam o restaurante. Na sua quase totalidade eram famílias com pai, mãe e filhos. Com exceção de um casal sentado no fundo do salão.

Era difícil dizer qual dos dois era o mais velho. Eles comiam em silêncio numa velocidade quase em câmera lenta. As mãos trêmulas que levavam os talheres do prato à boca pareciam carregar porções de comida de um peso imensurável. Estavam bem vestidos, provavelmente com suas roupas de domingo. A senhora até batom usava. Lá pelas tantas eles acabaram seus pratos principais e se levantaram em intenção de chegar à mesa de doces. Ele se levantou primeiro com ajuda de uma bengala, deu a volta na mesa, estendeu o braço livre e com muito esforço conseguiu fazer com que a pequenina e muito magra senhora se levantasse. E assim, a passos lentos e postura trôpega, os dois iniciaram a travessia do salão. A senhora apoiava-se no marido que, por sua vez, era apoiado pela bengala. Se aquele pedaço de madeira desaparecesse os dois poderiam fatalmente cair feio, quem sabe até mesmo morrer (meu velho avô morrera depois de uma queda boba em nossa casa naquele mesmo ano, por isso essa possibilidade da bengala desaparecer realmente passou pela minha cabeça e por um lapso de segundo me assombrou). Acho que nunca torci, ao vivo, tanto por alguém. Os passos curtos e lentos faziam a travessia do salão um ato de suspense insuportável. Os garçons com suas bandejas cheias de pratos e copos vazios tiravam finos inacreditáveis dos velhos e eles, persistentes, continuavam. Fiquei a espera da tragédia eminente e senti um profundo alívio e grande satisfação quando finalmente eles conseguiram chegar ao buffet com sucesso.

Mas o drama não estava nem na metade. De imediato percebi que a única mão livre do casal não agüentaria pegar um daqueles pesados pratos de louça branca. Com um tremendo esforço a senhora até tentou sustentar por alguns segundos o prato na sua mão e quando eu estava prestes a me prontificar a ajudá-los, antes que o prato se espatifasse no chão, um atendente do restaurante finalmente percebeu a dificuldade dos velhos e serviu-os com o doce escolhido. Eles apontaram para o rapazote a mesa em que estavam sentados e suas sobremesas chegaram três minutos e meio antes deles completarem a travessia de volta.

Enquanto o casal, finalmente, saboreava seus doces sem pressa, resolvi “voltar” para mesa em que estava F. e família. O assunto era a péssima programação da televisão aberta aos domingos e agora eu tinha a chance de ser simpática e agradecida pela companhia me interagindo na conversa. Durante um tempo me distraí de maneira agradável com os parentes de F. e só acabei percebendo que o velho casal se dirigia ao caixa com suas comandas quando eles já estavam a pouco menos de dois metros de distância. Isso foi bom, pois me poupei de sofrer menos cinco minutos da minha vida, mas a partir do momento que percebi a presença deles novamente não consegui desviar meus olhos da situação e abandonei mais uma vez a concentração da mesa em que estava sentada.

Eles pareciam beirar os noventa anos cada um e estavam ali em pé, esperando que a moça fizesse a conta de suas despesas. A senhora se apoiou no balcão para que seu esposo pudesse usar a mão que não segurava a bengala e pegar o dinheiro do bolso. Ele pagou, pegou um troco, e desistiu de conferi-lo na metade do processo. A impressão que me deu foi que sua vista não conseguiu distinguir a diferença de valores entre as notas e ele preferiu acreditar na honestidade da recepcionista guardando seu resto de dinheiro sem pedir ajuda de ninguém. Aquele casal ali, quase acabando em suas roupas de domingo, debaixo das luzes fosforescentes de um salão que vende comida pelo peso me emocionou profundamente. Simplesmente porque estavam ali, no mesmo lugar que eu, num esforço imenso de sobrevivência e adaptação, enquanto eu apenas comia com uma outra família que não a minha para não morrer de tédio. E assim os dois saíram me deixando a rezar para que chegassem sãos e salvos em casa.

Antes de “voltar novamente” à mesa da qual fisicamente nunca levantei, uma pergunta crucial me rasgou inteira por dentro; existiriam filhos ou netos?

CACHORRO QUE VAI COM TUA CARA - confesso que simpatizar com animais e principalmente com cães é de uma falta de criatividade cavalar, mesmo porque não sou a maior amiga dos bichos. Mas já passei por duas situações comoventes com vira latas de rua que me fizeram acreditar na existência de uma cumplicidade natural entre cachorros e humanos, fazendo valer a máxima que diz que os cães são os melhores amigos do homem.

Numa bela e estrelada madrugada saí eu de uma festa na Casa Rosa e aos tropeços comecei a descer a ladeira da Rua Alice. Eu não era a pessoa mais sóbria do mundo e o pouco de concentração que me restava era para fazer com que minhas pernas me conduzissem a Rua das Laranjeiras sem maiores complicações.

Chegando a altura do Serafim percebi que um cachorro sem dono nem raça descansava debaixo da marquise. Sem nenhuma razão lógica, a não ser o álcool no sangue agindo de uma forma espantosamente sentimental (é, às vezes acontece), me abaixei e comecei a fazer festa no vira latas, que aceitou a manifestação de carinho gratuito de muito bom grado. Mas meu rompante carinhoso não durou mais que minuto e meio e rapidamente tratei de recolocar em minha cabeça confusa a meta de chegar em casa. Já havia combinado mais cedo que iria naquela noite pousar no apartamento amigo da Soares Cabral, portanto precisava apenas andar umas poucas quadras para achar o conforto que um espírito momentaneamente ébrio necessita para se recuperar.

Atravessar a Rua das Laranjeiras é algo que normalmente exige atenção especial. De madrugada e com a pedestre de porrinho, então, essa atenção tem que ser multiplicada. E foi assim, com toda a atenção que eu consegui juntar, que respirei fundo e num momento em que o sinal estava fechado e não havia sinal de nenhum carro na rua, resolvi atravessar correndo. A travessia ocorreu com êxito, mas minha concentração direcionada ao fato apenas de não me deixar ser atropelada me cegou ao meio fio que separa o asfalto da calçada e, bum, o passo virou tropeço e eu acabei no chão. Mas antes mesmo de eu pensar em me levantar, quando ainda tentava entender o que havia acontecido, percebi à altura dos meus olhos o cachorro da marquise do Serafim. Ele atravessou a rua em direção ao meu encontro, me cercou de maneira ofegante até eu conseguir me levantar e me conduziu ao prédio da Soares Cabral. Chegando à portaria do prédio ele parou ao pé das escadas e ficou me observando. Naquela altura me pareceu normal, e educado da minha parte, convidá-lo a subir. Abri o portão e acenei para que ele me acompanhasse, mas ele se sentou na calçada e ficou lá, me fitando. Insisti para que ele entrasse até entender que seus olhos apenas diziam adeus (coisas que só quem bebeu percebe). Desisti e fechei o portão. Dirigi-me ao elevador, mas antes de entrar não resisti dar uma olhada para trás. O vira latas não estava mais lá.

A outra historia é bem parecida mas ao invés de estar saindo de uma festa eu chegava a um bar. O bar do seu Zé no Catete é, talvez, o botequim mais aprazível do Rio de Janeiro. E era para lá que eu me dirigia quando vivenciei a minha segunda experiência comovente com vira latas de rua.

Eu nunca soube o nome da rua do bar do seu Zé, mas para se entrar nela é preciso caminhar pela Rua do Catete ali pela altura da delegacia legal que, apesar disso, é a parte mais escura, sombria e, talvez, perigosa, do bairro. O ônibus, que me levara até lá, já havia me feito o favor de parar não só fora do ponto mas a poucos metros de um grupo um tanto suspeito no meio da calçada. Para entrar na rua eu tinha que passar por esse grupo e à nossa volta não existia mais nada. A rua estava escura e ninguém mais se aventurava caminhar por ali. Era eu e eles, e eles já haviam percebido o meu dilema. Tenho mesmo a impressão de ter ouvido um começo de caçoagem direcionado a mim.

Foi nesse exato momento que um enorme cachorro negro de tom raivoso apareceu do nada e correu em direção ao grupo sinistro, espantando-os de lá. Meu medo, na realidade aumentou. Era só o que faltava, depois de estar a vias de ser assaltada na rua, levar coça de cão raivoso. Quem sabe mesmo ser mordida, quem sabe mesmo estilhaçada como nos casos dos ataques de pit bulls que lemos no jornal. Aquele cachorro não parecia ser de uma raça dessas notoriamente perigosas mas era, sem dúvida, um vira latas ameaçador. Tremi nas bases me prometendo nunca mais inventar de ir sozinha ao seu Zé à noite, quando o medonho cão correu em minha direção, parou na minha frente, e, inesperadamente, começou a abanar o rabo com aquele olhar abobado tão característico dos vira latas felizes. E, para se certificar que ninguém mais iria mexer comigo, me escoltou até a porta do bar. Como acontecera com cachorro de Laranjeiras, a fera do Catete assim que percebeu que eu chegara ao fim de meu destino segura, deu meia volta e foi embora.

É difícil não se emocionar com esse tipo de coisa justamente por ser a demonstração de um ato que entendemos como carinho, simpatia e respeito, vindo de um animal que não pensa e que não fala. Os entusiastas de cachorros que vierem a ler esse texto talvez acharão que uso aqui de um tom preconceituoso, mas como nunca tive nenhuma ligação mais estreita com qualquer tipo de animal, minha linha de raciocínio segue o que aprendi na escola, só o ser humano é bicho racional.

Considerei finalizar essas linhas com uma história sobre crianças, mas acho que juntar velho, animal e criança num só texto poderá ser demais ate mesmo para mim. Quero voltar, num futuro próximo, a esse tema dos acasos proporcionando ternura, mas prometo que as histórias que seguirão esses relatos irão partir de princípios mais maduros e menos óbvios.

Antes de dar o ponto final, gostaria de voltar a meu amigo D. e a Aliocha. Dias desses conheci no Princesa da Lapa um velho caquético que tinha como companheiro fiel um cachorro tão velho quanto ele. O velho ficava na mesa, sorvendo lentamente uma bebida quente, enquanto o cachorro permanecia deitado, como que esquentando o pé do dono. Lá pelas tantas a mesa vizinha ofereceu ao cão um resto de carne aperitivo da mesa e o cachorro, em alvoroço, aceitou não só o presente como os afagos das meninas que haviam lhe presenteado. O velho, vendo que o cachorro começava a se afeiçoar a outros não tardou a ralhar: Bruno! Volte menino! – ao que o cachorro imediatamente obedeceu. Me lembrei imediatamente do primeiro capítulo do romance que meu amigo se deliciava. Humilhados e Ofendidos começa com um velho e seu cão numa postura por demais parecida àquela que eu presenciava com Bruno e seu dono. No livro os dois eram muito velhos e morriam praticamente juntos, como se um estivesse apenas esperando o outro desistir. Vendo agora os personagens do bar da Lapa, eu tinha a impressão que o mesmo aconteceria com eles e não tive como não me lembrar carinhosamente do livro, de D./ Aliocha, dos velhos, dos cachorros, e de como ler Dostoievski emociona e faz manter os olhos abertos para a possibilidade de tantos outros acasos que ainda estão por vir.

Barbara Kahane

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