segunda-feira, outubro 02, 2006

Acidente


No dia do acidente me irritava perceber o tempo. Em blocos. Entrei no prédio da minha amiga errado como uma cena socada no filme de algum babão. Podia então começar um conto desastrado, imaginar um filme e esquecer, repensar no filme e escrever, dormir cansado de pensar... qualquer idéia desgastava.

Disperso. Eu vagava num grande intervalo, distante, aeroplano, asfalto. Saio na rua e paro na esquina. Tomo um Café Café Café Café café café...traz um cafezinho e quanto que dá, por favor. Atraves...se liga na moto!. – Porra, mermão, se liga! ...ando. Vejo na moto partir junto com meu risco a pizza quente. Eu ando na faixa.

Um engarrafamento se arrastava em silêncio na terra. Fosse o que fosse era sem rumo; do apartamento dela tudo da rua entrando na minha cabeça: a brisa, o bafo das coisas. Ainda mais abaixo, o Rio, no térreo, esperando: resisti em silêncio sem saber o gesto de reagir. Fui pra cima disso tudo sem saída, sabendo o futuro. Despejei caçambas de aborrecimento de cima, pro lado, pra baixo, pro play. Só me restava nem entender porque o acidente, o automóvel. Estava há dias assim, sofrendo o que passava.

Salvador: pela janela dos fundos eu via o descampado. Movimento o dedo, girando a velocidade da máquina fotográfica, enquanto embaixo, meu alvo. Um guri do prédio verde em frente se mexia, e vi que se divertia correndo em círculos pelo pátio sem sombra, sem graça, vazio. Eu que não queria viver uma infância naquele pátio.

Eu sabia que ficaria na agonia de pensar que havia uma seqüência, que faria o que quer que fosse depois da janela. Virar, me desinteressar, despertar e ler o jornal, arrumar alguma coisa pra achar graça, tomar café... Escrever, no final, provável.

Diminuí um pouco, cantarolei um pouco.

De ônibus vamos até Lençóis. Entre o verde da trilha e os...lençóis... cavalos, guias, gringas...lençóis... coisas de pensar, de contar o tempo. Fiquei com medo de não conseguir mais lençois andar... de tanto pensar.... imagens nas dobras dos lençóis.

Trilhas, andar no mato: um passo, pedregulhos pretos e pretinhos, a mão dela segurando a minha mais forte nas horas íngremes. Outro passo, anoto. Troco uma palavra por outra. Troco de dia, esqueço o mês, fotografo, silencio...penso em ser uma praia em crônica de domingo velho.

Em Salvador, li todos os dias desenhados em relevo num caderno escolar barato. Enquanto o dendê pingava nas folhas finas, transparecia a praia, as ondas, o camarão suculento caindo todo vatapazento do acarajé, os botões do elevador. Eu sabia meu andar. E ainda me satisfazia comendo acarajé. Comecei a rascunhar em Lençóis, e percebi toda aquela programação dissecando o dia subindo diamantina demais.

Eu estava feliz, a viagem estava ótima, mas parecia que rascunhavam na minha cabeça: “consciência demais é doença”. Assim, nas linhas, estradas ou trilhas vãs.

Algum tempo depois....

Fui saindo do prédio da minha amiga. Se eu não tivesse saído do prédio nada teria começado, aliás, não devia nem ter entrado por aquele portão com defeito, passado por aquele porteiro sorridente. Ele sabia do acidente, rabiscaram naquele sorriso pra mim: cuidado com o carro!

“Aliás, não devia ter entrado naquele prédio”:

- Será que é esse prédio aqui?

- Não sei, olha o número. Olha só a fachada daquele prédio, tem uma criança e um lobo em relevo, sinistro!

- É, quem será que mora aí?

Olha, o número do apartamento é 401. Engraçado, tenho vários amigos que moram no 401! Acho que as pessoas que moram no 401 são chegadas, se parecem, né não?

- Claro.... vamos entrar...

Eu já conhecia bem tudo que eu ia falar, não dá pra ser diferente, o mudo agente conhece e vive dentro. Fui perdendo as letras na boca. Apesar de nunca ter ido ali, eu conhecia bem a cena, e isso me entediava, a sensação de conhecer esse tipo de noite, em que podem acontecer coisas deferentes.

Então o acidente...

Calmo e articulando como nunca pensamentos claros em frases virguladas e diplomáticas, contendo e expondo gestos corretos de acordo com as normas internacionais do conselho de prevenção de tabefes pós-colisão, segurava estático uma coca cola....olhei por uns cinco segundos a mais para o vermelho da latinha.

Tive que consumir, o acidente foi em frente a um posto de gasolina com am pm. Então desço do carro e logo a dica : “Compra uma coca cola!”. Como não? Cedi à sede. Quanta luz naquela esquina! Entro na loja.

Eu era misto quente e o Audi um X-tudo. Não espirrou muito ketchup pelo asfalto. Vejam, o acidente foi imbecil com uma analogia rastaqüera socada num conto com jovens da cidade depois dos anos 60. Uma seqüela pop, contos desastrados.

Vi minha certeza cochichar serena no meu ouvido que todo o cenário, os sons, as roupas, iam do real pra outra dimensão frouxa, assim, meio tomate-etamot que atravessa na faixa e vira verde, laranja, vermelho... Bem, tinha um frentista colorido, mão na cintura. Eu: mão na latinha, outro gole, coisas atravessando a rua, indo pro meio dos lençóis.

Lentidão, e uma lembrança dos acidentes televisionados nos canais abertos pro público de apartamentos mal iluminados nos finais de tarde. Tinha uns finais de tarde daqui da janela que eu escutava os automóveis derraparem e frearem, mas nunca batiam, e eu tentava montar a cena na minha cabeça: a colisão!, com a mesma câmera lentae detalhista de ontem à noite no acidente.

Perseguição de caminhonetes desatinadas sambando em rodovias desertas, narrações alucinadas, tomadas de helicóptero em VHS, é isso que aparece quando penso na batida: programas importados pela Rede Bandeirantes, venda de vídeos dos “piores acidentes do mundo 1990-95”. Barulhos de hélice, coisas que detesto. Som de vidro que não quebra e não escuto.

Na verdade, fiquei calmo, foi uma colisão de olhos abertos. Ato consumado, todos aos devidos lugares. O pai coronel do jovem motorista, vítima de chinelo, 20% culpado, estava lá para consolar o filho. Todo mundo compareceu.

Instruções:

“Seguindo as marcas de pneu você chega lá... mas se você não ver é assim: dobra à direita, aí você já fica à sua esquerda logo, porque você vai dobrar na primeira à esquerda, o trânsito ali é pesado e passar pro outro lado da pista depois é mais complicado... aí vai ter uma Igreja na esquina, e você dobra à esquerda logo depois dela. Aí você vai ver as luzes já te ofuscando, brilhantes, assim, fortes. Ei, pssiu, olha, presta atenção no protagonista, ele é ótimo, sabe, transmite assim uma coisa densa, sabe, uma tensão, ótimo”.

- Muito obrigado, Madame.

Chegamos lá, instalados num carro prateado e azul. É bom que combina com os discos que escuto aqui enquanto escrevo.

Então o acidente....

Lamento....começo novamente a escrever, escrevo sobre estar aqui sentado com o ventilador ventando forte e remexendo meu cabelo curto, recém-curto. Pensando no acidente. Cortado. Tentando não pensar no acidente. Curto.

Releio, rasuro e reescrevo no quarto: “as tiras tortas da persiana branca. A luz do quarto”. Rasuro. “É um feixe fino que deixa passar a noite no meu quarto”. Não gosto. “Não entra brisa nenhuma.” Apago.

Nos dias que se seguiram, nada de novo. Hoje eu andava na rua, vi um gato branco alaranjado sob a luz do supermercado. Vi outro, preto, na porta do prédio da esquina, e, no caminho entre os dois, pensei no primeiro e acabei acariciando o segundo, que fugiu assustado.

Alguma coisa teria mudado comigo se alguém tivesse morrido naquele acidente.

Agora que o tempo mudou e o nublado estanca em casa a cabeça, começo de novo a poder começar, sem o agitado cromatismo dos dias de sol. Provável que eu mude o rumo de escrever hoje, e por um bom tempo. O acidente passou, e agora que toca uma música pop antiga na rádio de algum apartamento longe, bem longe por causa da minha preguiça, entre o murmúrio das caixas de som silenciosas aqui no meu ouvido, como uma respiração contínua imaginada, e o estacionamento do supermercado.... entre o pássaro histérico preso na gaiola do apartamento defronte da minha janela e os pombos comendo o milho no telhado encima.....ai ai, zzzzz..zzz..zz... posso escutar a arquitetura desmanchar pacífica. Tudo isso eu escrevo, e a música antiga já não sei se era ruim mesmo, sei que já acabou e sigo para outra direção, talvez a de outro acidente.

Nem lembro da esquina




Augusto Malbouisson

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