segunda-feira, junho 14, 2010

OS ACASOS E A TERNURA 03 - O Bogarde tijucano na brisa parisiense



Entrei no metrô nervosa após ter andado, já em meio desespero, algumas quadras de Ipanema para chegar à estação. De alguma maneira muito doente da cabeça eu arranjei uma espécie de fantasia maluca em que imagino que, sempre que vou encontrar romanticamente pela segunda vez alguém, acontece no caminho algo muito ruim e eu não chego. Era para um encontro desses que nervosa eu entrava no metrô e o pensamento de que estava prestes a ser atingida por uma bala perdida, um atropelamento, uma viga do alto do prédio, um ataque fulminante do meu coração desesperado me consumia ferozmente.

É uma coisa meio assim Tarde Demais para Esquecer, filme hiper melodramático com Deborah Kerr e Cary Grant e muitas vezes referenciado em outros filmes mais atuais e até em novela. No filme Terry McKay (Kerr) e Nickie Ferrante (Grant) se apaixonam em um barco e marcam de se encontrar no alto do Empire State Building não sei quanto tempo depois. No dia marcado ela está indo em direção ao ponto de encontro quando um engarrafamento a faz atrasar. Impestuosamente, ela abandona o táxi em que se encontra e, por descuido, acaba sendo atropelada por um carro. O seu par fica no alto do prédio se sentindo muito abandonado, e bastante idiota, enquanto ela fica paraplégica. È tudo deliciosamente triste, e improvável e eu nem sei dizer quando comecei com essa mania de fantasiar que algo que se assemelhe a isso possa de fato acontecer comigo. Mas é batata, e nem é premeditado. Quando estou indo em direção a um segundo encontro fico pensando que alguma coisa assim irá acontecer e que o meu par, assim como Cary Grant, por um tempo irá ficar com muita raiva de mim achando que dei o bolo e que fui insensível o suficiente para nem atender o celular enquanto ele no ponto de encontro me esperava idiota. Isso me faz ficar muito triste e isso faz com que eu execute o caminho com pânico da minha própria sombra. Mas dessa vez não foi assim.

Entrei no metrô nervosa porque nas quadras em que andei até a estação General Osório aos poucos me vinha essa maldita fantasia. Como uma dor de dente que vai se anunciando e você sabe que não importa o que você fizer alguma hora a sua densidade vai chegar ao pico e vai ser uma merda. Tentava pensar em coisas boas, como alguma música para cantarolar, mas as possibilidades de fatalidade que eu poderia sofrer no trajeto começavam a serem listadas involuntariamente na minha cabeça. Entrei na estação, esperei o vagão e quando chegou entrei nele ainda pensando nisso. Sentei e as portas permaneceram abertas por alguns segundos intermináveis, até que entraram correndo uma mulher e um homem. Esbaforidos eles, ainda em pé, se recobravam enquanto procuravam o mapa com a ordem das paradas. Acharam e começaram a conversar em francês. Ela apontava para alguma coisa, ele parecia não entender nada e não confiar muito no que a mulher parecia sugerir. Eles sentaram e continuaram a discussão. Ela se levantou sozinha agora e por uns segundos voltou a mirar para o mapa. Sua expressão não era realmente mesmo digna de confiança.

Ela se virou e foi a primeira vez que percebi esses dois senhores que já estavam ali sentados. Deviam ter por volta de cinqüenta e tantos anos. Um de cabelos grisalhos e bigodes, também grisalhos, bem aparados. O outro de cabelos brancos e óculos de grau em armação imitação tartaruga. Vestiam-se praticamente iguais, calças jeans limpas e camisas de botão de manga curta bem passadas compradas em loja de departamento. Um usava tênis e o outro sapato. Os dois calçados eram de marcas genéricas. Os dois senhores também carregavam pastinhas parecidas. Deveriam ter comprado na mesma loja sem marca. Poderiam ser irmãos, mas não eram. Sem dúvida moravam juntos. Sentados delicadamente reparavam a cena dos turistas como eu o fazia. Um tinha os olhos muito atentos e percebi em seu semblante uma certa ansiedade. Este era o de bigode. O outro apenas possuía um olhar curioso e balançava uma das pernas, elegantemente cruzadas, de maneira relaxada.

A mulher ainda confusa voltou para seu lugar, cruzando o caminho com esses dois humildes, mas distintos senhores. Ela se sentou e continuou a discussão com seu acompanhante. O senhor de bigodes com muita suavidade virou-se, de maneira a ficar de frente para eles, que estavam assentados num daqueles bancos que ficam de costas para parede. Ele perguntou alguma coisa que ouvi, mas não entendi, porque de francês entendo muito pouco. O outro senhor distinto sorriu com um sorriso de certo orgulho, mas manteve seu olhar para frente, disfarçando estar alheio ao acontecimento.

A mulher sorriu e mais uma vez se levantou indo em direção ao mapa. Ela apontou e pela primeira vez falou. Para surpresa de todos a língua era o português, com forte sotaque de Portugal: “Onde nós temos que saltar para pegar a linha dois? Eu me lembro que era na Estácio, mas acho que eles andaram mudando as coisas aqui desde a minha última visita”. O senhor de bigodes não conseguiu disfarçar o seu desapontamento. As palavras lhe fugiram. O outro senhor, percebendo o desconcerto de seu acompanhante, respondeu que, de fato, as coisas mudaram e que na verdade eles podiam saltar em qualquer estação a partir de Botafogo e pegar o metrô da linha verde. Aquele que eles estavam era laranja, ia para Tijuca, que era até para onde ele e o outro estavam indo. Ele perguntou por que ela queria pegar a linha dois. Ela respondeu que eles estavam a caminho do Maracanã para ver um jogo. Ela falou que haviam lhe dito que naquele dia haveria uma partida que provavelmente não teria nada de violência. Os dois senhores não faziam idéia de que times estariam jogando, ou se haveria jogo, pois era quinta-feira. Ela se sentou desapontada e o senhor de bigodes voltou a se virar, para ficar de frente a ela. Ele perguntou insistindo no francês e dessa vez eu entendi: “Il est français, n’est-ce pas?”. O turista homem sorriu e respondeu por si só: “Oui, ça arrive”.


Pela primeira vez reparei no sujeito e entendi muita coisa. Era um jovem, de não mais de vinte e cinco anos, bastante atraente para certos tipos de gosto. Alto, cabelos ondulados penteados com uma espécie de gel, corpo bastante atlético salientado por uma camiseta justa. Após a afirmativa o senhor de bigodes foi tomado por uma alegria que poderia ser reparada a quilômetros de distância. Enquanto isso o senhor de cabelos brancos observava sério a cena de rabo de olho. O senhor de bigodes fez mais algumas perguntas que pelo que entendi estavam relacionadas à ida dos dois ao Maracanã. A portuguesa não mais respondia deixando o trabalho para seu amigo que nitidamente sentia uma certa vaidade pelo tipo de assédio enquanto o senhor de bigodes, a cada diálogo falado, escondia cada vez menos uma euforia um tanto afetada. Isso fez com que ele em poucos segundos ficasse mais seguro de si, e de seu francês, e perguntasse ao rapaz se ele era de Paris. Antes de deixar o rapaz responder ele completou de maneira muito alegre que Paris era a sua cidade favorita de todas do mundo e que ele nunca iria esquecer o ano de 1987 em que passou lá. O rapaz sorriu e respondeu com típica entonação levemente prepotente que os franceses costumam carregar:“Non, je suis de la région de la Champagne, vous y etes déja allé? C’est très beau. En fait, je suis allé moi même très peu de fois à Paris, et en 1987 je n’étais q’un bébé”. Os olhos do senhor de bigodes se encheram de uma certa tristeza e cabisbaixo ele respondeu “Non, je n’ai été qu’a Paris... et je rêve un jour d’y retourner”.





Nesse momento o trem parou na Estação Siqueira Campos e o vagão ficou subitamente cheio. Eu não enxergava mais o casal de turistas, mas via que o bolo de pessoas passou a tampar também o espaço de comunicação entre o senhor de bigodes e os dois europeus. O olhar do senhor de bigodes era grave e triste. Ele, aos poucos, foi se virando para frente. Os olhos perdidos no horizonte. Perdidos em algum lugar que o senhor de cabelos brancos percebeu e mesmo machucado pela ponta de ciúmes que o consumiu durante o diálogo travado pelo outro senhor e o turista francês, tocou no braço do seu companheiro e falou: “Treina mesmo que um dia vamos juntos. Se tudo der certo ano que vêm mesmo, se sair o dinheirinho da pensão. Você me apresenta Paris e me leva a todos aqueles lugares que você sempre me conta”.

Os olhos do homem de bigode sorriram o sorriso mais sincero do mundo e mais uma vez seu olhar se perdeu, agora em um outro horizonte. Ao invés da angústia e melancolia indisfarçáveis poucos segundos antes existia agora uma certa alegria esperançosa. Ao mesmo tempo, seus olhos marejados pareciam estar em outra época. Numa época passada onde rapazes como aquele da região de Champagne se encontravam em Paris e conversavam com ele em francês por toda a noite. Onde a brisa da cidade das luzes tomava conta de seu corpo em longas caminhadas noturnas. Eu vi em seus olhos o cheiro dessa brisa e me comovi também. Ele voltou o rosto para o senhor de cabelos brancos e tocou carinhosamente, mas de maneira bastante discreta, a sua perna. Os dois sorriram. Havia ao menos um impecável quarto e sala esperando por eles nas redondezas da Francisco Xavier.

Quando dei por mim o sinal sonoro de fechamento de portas estava tocando. Levantei sem conseguir dar um olhar de despedida consciente para esses dois senhores e atravessei as esteiras e escadas rolantes intermináveis da Cardeal Arco Verde sem ter medo que algo inesperado acontecesse. Caminhado por algumas ruas já desertas de Copacabana senti o cheiro da mesma brisa parisiense que vi nos olhos do senhor de bigodes e cheguei ao meu destino. Sã e salva.

Barbara Kahane

Um comentário:

Anônimo disse...

Já não havia mais tensão , talvez uma leve ansiedade ...
Muito bom !!! gostei .