terça-feira, março 18, 2008

PRESSENTIMENTO

Hoje, estatelada na cama já quase às duas da tarde, Clarice chorava. Era um estômago que doía, que ardia, que queimava. Eram lágrimas de todas as dores do mundo. O estômago acima de tudo. O estômago acima da cabeça. O estômago acima do coração. O estômago acima da vida.

Clarice não se lembrava como havia chegado em casa na madrugada anterior mas lembrava-se de ter saído vestindo a saia florida comprada para ocasiões especiais em três prestações ainda não quitadas. A saia que hoje, às duas da tarde, Clarice via amarrotada jogada no chão no canto do quarto. O estômago ardendo como o inferno na cama e a saia especial suja e amarrotada no chão.

Ontem, quando Clarice tirou a saia pendurada em um cabide do armário, tinha a estranha sensação de que aquele seria um dia especial. Sem nenhuma razão específica, Clarice acordou pensando na saia e isso lhe soou como presságio a ser respeitado. Clarice usaria a saia e algo especial e inesperado aconteceria. Hoje, Clarice chorava.

Como ontem era para ser o dia, Clarice também não economizou no perfume. Era um perfume caro e Clarice só usava-o em dias especiais. Já que havia tirado a saia do armário, não existia motivo para economizar no perfume. Para se usar aquela saia, tinha-se que estar com um certo cheiro e o cheiro certo vinha engarrafado para ocasiões como esta em uma garrafa cara que jazia no aparador do banheiro.

Quando saiu de casa, Clarice já sabia que daria as mesmas aulas particulares para seis adolescentes temerosos de reprovação, como toda sexta feira nos últimos oito anos ela fazia sempre que o terceiro bimestre das aulas iniciavam. Os anos passavam mas as sextas feiras eram sempre as mesmas, com as tardes dedicadas às aulas para engrossar o orçamento do mês. Aulas para os mesmos adolescentes que mudavam um pouco de feições e de nomes mas sustentavam os mesmos gostos, as mesmas manias, o mesmo jeito tempestuoso e mimado, os mesmos ídolos, o mesmo cheiro da puberdade, os mesmos rostos maltratados por espinhas, as mesmas mães com seus cheques gordos.

Quando saiu de casa, Clarice também já havia recebido ligações e torpedos confirmando a mesma cerveja de sexta feira no boteco em que ela e um grupo de amigos freqüentavam há dez anos. Era um boteco na Lapa que era o mesmo boteco desde que a Lapa às sextas feiras não era freqüentada muito por ninguém e Clarice ainda era uma estudante do curso de História. A Lapa encheu e o boteco sofreu reformas no banheiro e no uniforme do garçom Marcos que apesar das cores diferentes do avental ao longo dos anos não perdia o hábito de reservar a mesma mesa no canto da pequena varanda para o grupo que toda semana se reunia lá. Clarice sabia que encontraria, sentados quase sempre na mesma disposição, a Marta, a Teresa, a Estela, a Joana, o Paulo, o David, o Bento, o João e os Pedros (Drummond e Xavier). Esse era o mesmo grupo de sempre e mesmo que a comunicação tivesse evoluído ao longo do tempo com o surgimento de torpedos e scraps a tradição continuava a mesma. Aquela sexta feira não seria diferente, mas Clarice sentia que o dia não era um dia como outro qualquer e assim saiu de casa com a saia ainda não quitada inteiramente e o perfume caríssimo e economizado a cada gota.

Hoje a saia está amarrotada no chão do quarto e a garrafa jaz um tiquinho mais vazia no aparador do banheiro. O estômago dói e a memória não a deixa lembrar muito bem de como chegou em casa. Talvez Teresa tenha-lhe dado uma carona, talvez Xavier tenha se aproveitado e a deixado na porta de casa roubando-lhe um beijo na portaria. Clarice teria declinado com educação ou retrucado com um tapa? Clarice teria aceitado e o chamado para subir? Pelo cheiro do seu quarto Clarice sabia que havia dormido sozinha. O cheiro do quarto quando Xavier insistia subir era completamente diferente. O cheiro do Xavier provocava dores no estômago em Clarice mas ela imaginava que esse não era o motivo da agonia de hoje.

Clarice se lembrava que aceitara um generoso gole do conhaque de Xavier quando viu que nada especial aconteceria de fato. Já era uma da manhã e tecnicamente o dia acabara e nada acontecera. Clarice se lembrava de sentir que não tinha certeza de nada. Clarice se lembrava de se sentir profundamente decepcionada com a sorte do dia. Clarice se lembrava de olhar Xavier e perceber que talvez seu nariz não era tão torto e suas piadas não eram tão ruins. Nem essa sensação era novidade e Clarice se lamentava de nunca ter conseguido aprender que quando ela começava a olhar Xavier dessa maneira era hora de parar e dar fim ao dia. Clarice se lembrava de não querer dar fim ao dia, de querer se prender a ele, de querer ter o poder de parar o relógio, de pensar que a esperança é a última que morre e nada acontece por acaso. Mas já passava da uma da manhã, cada vez mais já passava da uma da manhã, e nada novo e surpreendente acontecia a não ser o nariz de Xavier que ficava cada vez menos torto e as piadas de Xavier que pareciam cada vez melhores.

Clarice se lembrava de ter pensado por um segundo que usar a saia e o perfume para Xavier era um grande desperdício. Talvez Clarice tenha se levantado nessa hora e pego um táxi. Talvez Clarice tenha chegado em casa sozinha e acordado agora com essa dor no estômago. Essa dor de estômago em conseqüência de um dia em que nada acontecera. Um desperdício de dor de estômago. Talvez essa dor, sim, tenha sido obra do acaso. Quando ontem saiu de casa com a saia especial, Clarice não imaginava que hoje estaria assim.

Clarice, estatelada na cama já quase às duas da tarde, chorava e sua saia, abandonada como um trapo velho no canto do quarto, parecia agora ter as flores murchas. Dentro de cinco dias venceria a última prestação.

BARBARA KAHANE

3 comentários:

Anônimo disse...

clarice lembrou, apesar da saia amassada com as flores murchas e o estômago doendo, clarice lembrou de pegar o papel, por mais torto que estivesse, a caneta, por mais preta que fosse, e anotar. anotar que acordou chorando e assim, sorrir, com uma lagrima caída na folha do caderno no fim do conto.

que coisa bonita...

Anônimo disse...

Inda num pescoei de vorta meu paráguas, digo guarda-chuva, podíamos ter parachuvas, já era melhor... Valeu pelo texto de vocês, saudades, Renato.

Anônimo disse...

e Clarice só usava-o
que tal: ...que Clarice só usava... ?
Gostei do teu conto e do pescotexto em geral. Lembranças Renato.