domingo, março 25, 2007

As Superstições, As Palavras e A Morte.

Quantos artifícios supersticiosos preciso arranjar para conseguir voltar a escrever? Estou agora diante do caderno da sorte de capa vermelha que me traz inspiração mesmo que depois o trabalho tenha que ser o dobro quando eu for catar milhos diante do monitor do computador.

Uso também uma caneta da sorte que dias desses furtei da cabeceira do meu primo Bernardo. Bernardo divide comigo o espaço e as despesas do apartamento que eu habito e às vezes eu roubo canetas da sorte de sua mesa de cabeceira. Ele nunca reclamou.

A caneta da vez tem os seguintes dizeres: Sportv é campeão. Seguro a caneta de uma maneira que enquanto eu escrevo só consigo ler os dizeres “É campeão”. Finjo que isso é importantíssimo para mim e para o processo de minha escrita como se a caneta incentivasse o surgimento das palavras que formarão o texto que será campeão. Um texto campeão, que diabos poderá ser isso? Será um sinal para eu me esforçar a falar sobre o mar? Eu nunca escrevi sobre o mar e eu faço, nesse momento, uma aposta comigo mesma que se eu conseguir até o fim do texto incluir o mar de alguma forma eu juro, juro, juro, por minha caneta da sorte, que a usarei no meu caderno de capa vermelha para escrever o conto do concurso do jornal O Globo.

De alguns dias para cá voltei a ouvir sistematicamente Leonard Cohen. Coincidiu com a época que eu redescobri uns outros textos meus que precisavam ser revisados e reescritos e, ao som de Leonard Cohen, eu consegui entrar no processo de cabeça. Leonard Cohen, portanto, é o meu cantor da sorte da vez. Coloco Suzanne e uma avalanche de palavras sai da ponta da minha caneta da sorte. Cohen me dá coragem para as próximas linhas.

Escrever é, sobretudo, um ato de coragem e nesses momentos é reconfortante estar munida de amuletos que dão sorte para o prosseguimento da aventura que é escolher palavras para inventar coisas que precisam ser ditas sem nem bem se saber o porquê. É preciso também ter classe, mas classe não é uma questão de sorte.

Existem pessoas que envelhecem e perdem a classe. Tenho impressão que isso aconteceu com Leonard Cohen. Suas composições não são mais as mesmas e ele parece ter enferrujado. É duro tirar classe de ferrugem e meu medo é um dia descobrir que eu nasci enferrujada. Para isso coleciono amuletos e finjo que Leonard Cohen está morto. Existe tanta gente no mundo que envelheceu e enferrujou que eu tenho ate dó. Por isso jaz na minha cabeça um cemitério imaginário para me fazer feliz e poder imaginar as pessoas vivas somente até o momento em que deveriam ter parado.

Dias atrás li uma entrevista com Paulo Mendes Campos para o Pasquim. Queria muito que o Paulo Mendes Campos estivesse vivo. Se ele estivesse vivo talvez enterrá-lo-ia em meu cemitério imaginário, mas como eu queria que ele não tivesse morrido aqui no mundo real! Quando Sabino escreveu Zélia, uma Paixão eu o enterrei no cemitério da minha cabeça. Eu era muito nova, mas já me mostrava uma fã fervorosa, principalmente do Menino no Espelho... em certa época de minha vida soube trechos de có. Minha família, como qualquer outra família de classe média, passou o pão que o diabo amassou com o Collor. Quando Sabino lançou a biografia sobre a Zélia, portanto, preferi fingir que ele havia morrido. Ele, talvez, tenha sido o morto número um de meu cemitério imaginário. Mas nada disso impediu que eu me debulhasse em lágrimas quando, há alguns anos, Sabino morreu de verdade.

É duro ter que viver num mundo onde Paulo Mendes Campos está morto de verdade porque olhar o mundo pelas crônicas dele faz tudo ficar mais bonito. Uma beleza agridoce, é verdade, mas ainda sim uma beleza rara nos olhos dos vivos nos dias atuais.

Nessa entrevista dada ao Pasquim ele relata a sua experiência com LSD. Ele fala que o LSD tem o poder de liberar o anjo e o demônio de uma pessoa, mas como ele vivia as suas vinte e quatro horas de cada dia de sua vida acompanhado pelo demônio, quando tomava LSD só sentia a companhia do anjo e ficava bem.

O que me faz lembrar da mesa de bar de ontem onde um amigo contava suas andanças recentes por Frisco e toda a áurea cultural presente na cidade. Ele falou dos ecos de Leary e todos os hippies e principalmente dos ecos beatnicks impregnadas em trechos da cidade. Como uma rua visitada por ele chamada Kerouac’s Alley onde trechos da poesia do escritor de On The Road se espalhamavam pelas calçadas. Fiquei um tempo pensando na imagem de alguém pisando nas palavras de Kerouac e cheguei à conclusão que isso por si só é de uma poesia imensa.

Kerouac está morto de verdade enquanto algumas de suas frases deitam-se nas calçadas de sua querida Frisco. É quase como se ele estivesse vivo. Mesmo assim, não me parece mal morrer aos quarenta e seis anos quando se produziu tudo o que ele produziu.

Neal Cassady morreu cedo demais. Ginsberg e Burroughs sobreviveram um tanto mais, mas realmente acho que para eles não deve ter valido muito a pena. Viveram mais, mas nada me faz crer que eles não tenham morrido muito mais desiludidos diante de todos os absurdos que somos obrigados a vivenciar por termos conseguido sobreviver à passagem do século, por termos chegado ao futuro. Quem não enferrujou, hoje nasce enferrujado (triste legado de minha geração).

Voltando a Paulo Mendes Campos e sua entrevista ao Pasquim, ele também explica porque abandonou a poesia. Segundo o cronista ele não tinha tempo de escrever poesia e não acreditava mais em escrever poesias. Ele não acreditava porque ele tinha que ganhar a vida (leia-se dinheiro para pagar comida e teto para si e sua família) e, portanto, não podia abandonar as suas crônicas, adaptações infantis e traduções para trabalhar dias numa única poesia. Diante das agruras diárias poesia era perda de tempo E mesmo assim ele morreu cedo demais. E mesmo assim vejo um mundo mais bonito quando leio as crônicas dele.

Eu não sei bem com quantos anos o escritor faleceu, mas acho que mesmo assim não existiria tempo o suficiente para bastá-lo. Mesmo que ele acabasse sendo obrigado a escrever algo como “PT e Virtude” para ganhar a vida e eu por conta disso fosse obrigada a sepultá-lo no meu mundo de mentirinha; tenho certeza que acabaria chorando um mar de lágrimas no dia de sua morte simplesmente por perder alguém capaz de escrever as seguintes linhas: Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros, uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinha, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões. *

(se essa rua fosse minha eu mandava ladrilhar com palavras de Paulinho para meu amor passar)

Por fim, diante dessas palavras desisto de minha crônica antes mesmo de começá-la e vou tentando me lembrar de cuidar das minhas três caixas de humor. Abro agora a maior de todas para esboçar a moral da historia.
(finalização à la Millor, que está vivo aqui e acolá e que graças a Deus é a prova que certas pessoas nascem com proteção anti-ferrugem)

Moral da história: POETA BOM É POETA MORTO.



*TRECHO DA CRONICA PARA MARIA DA GRAÇA PUBLICADA NO LIVRO O COLONISTA DO MORRO PELA LIVRARIA JOS É OLYMPO EDITORA.


B.K

2 comentários:

Mariana Kaufman disse...

putz, barbara!!! caralho, que foda! tá ficando cada vez mais inacreditável, lindo!

Dissolvida disse...

Nossa! muito bom!!!!
bj