quinta-feira, setembro 23, 2010

Agarrando o tempo que passa





Tem esse café em Copacabana meio metido a francês. É perto “do” Copa e lá vende madeleines. Elas estão lá, em exposição para os clientes junto às outras iguarias, e na etiqueta que indica o que aquilo é está escrito Madeleines (Marcel Proust).

Eu estava tomando um expresso e comendo uma quiche metida à besta de queijo de cabra com amêndoas quando esse senhor apareceu. Uns setenta e poucos anos. Estava assustado. Ele percebeu que eu percebi que ele estava assustado. Me tomou por cúmplice. Eu era anos luz a pessoa mais nova do salão. Se bobear, depois de mim (e das garçonetes) ele era a segunda pessoa mais nova do salão. Veio em minha direção.

“Acabei de levar uma bolsada de uma velha.”

“Oi?”

“Na farmácia... acabei de levar uma bolsada de uma velha louca.”

Tomei um gole de café. Seus olhos assustados esperavam uma reação. Reagi.

“Nossa... que horror...”

Ele aquiesceu com um movimento de cabeça.

“O senhor está bem?”

“Sim, foi mais o susto.”

Silêncio. Dei uma garfada. Ele me olhava, eu tentava não olhar para ele. Ele estava parado na minha frente. Comecei a ficar constrangida por estar simplesmente mastigando. Olhei-o nos olhos.

“E você quer saber por que ela me bateu?”

Tentei arrumar alguma maneira delicada de dizer que não, mas não consegui a tempo. Ele respondeu mesmo assim.

“Porque falei que a Dilma nunca tinha sido guerrilheira... a mulher ficou uma fera...”

Meu deus, para onde iria essa conversa? Parei de comer. Gosto de estar muito concentrada no sabor quando estou comendo. Tomei um último gole do expresso e respirei fundo, aquilo poderia levar tempo.

E levou.

O senhor sabia todas as teorias da conspiração possíveis. Todas contra Dilma. Inclusive que ela está à beira da morte, que havia sido operada naquela semana e que naquele dia específico ela não tinha tido a agenda divulgada porque estava se recuperando da delicada cirurgia. O senhor realmente estava muito preocupado com isso. Havia até se esquecido da bolsada da velha maluca.

“Se a Dilma vencer fico bastante insatisfeito. Mas se ela morrer depois de eleita vou para Londres... sumo daqui.”

“Londres?!”

“Minha filha mora lá.”

“Então talvez seja essa a única solução...”

“É... só não sei se minha filha iria gostar muito da ideia... é porque ela tem lá.. a vida dela... é casada... casada com um inglês... tem filhos... meus netos são ingleses...”

Olhei em seus olhos e vi que marejaram. Ensaiou um riso.

“Sabe, visito minha filha uma vez a cada dois anos”

“Que bom...!”

“E depois viajo por várias cidades... no fim, sempre dou uma paradinha em Paris... lógico...”

“Lógico...”

“É também o seu lugar favorito da Europa?”

“É o único que eu conheço..”

“Ah...”

Mais um silêncio. Não sei se o que eu sentia era um desejo dele ir embora ou de continuar falando.

“Você trabalha?”

“Sim..”

“Mexe com que?”

“Cinema.”

“Ahhh.. que boa notícia! Podíamos fazer um filme sobre isso...”

“Hã?”

“Sobre isso, essas histórias que eu sei da Dilma. Já liguei para Globo News falando que eles podiam me entrevistar, mas eles não se interessaram... de repente se a gente levar uma coisa pronta.. com tudo o que sei.. imagina o escândalo.”

Dei uma segunda olhada para ele. Ele realmente, numa primeira impressão, não parecia louco. Ele falava muito bem. Suas roupas eram visivelmente caras. Sua filha com toda certeza morava em Londres. A solidão faz coisas muito tristes e engraçadas com a cabeça das pessoas.

“Desculpa. Meu trabalho com cinema é burocrático. E ainda mais cuido de uma outra etapa. Exibição. Eu cuido para que os filmes sejam exibidos... não é bem isso mas é mais ou menos isso..”

“Entendo...”

Ele falou com a cara de quem não tinha entendido nada... fiquei triste.

“E olha, um filme leva tempo.. tem que escrever, filmar, editar, fazer cópias para distribuir... a eleição é daqui algumas semanas, né? Não daria tempo”

“É... estamos ferrados...”

Olhou triste para o chão. O futuro realmente o apavorava.

“Você acha que eu mereci? Levar uma bolsada?”

“Não. Ninguém merece levar uma bolsada.”

“E só porque eu falei uma verdade!”

“Quase ninguém está preparado para ouvir verdades.”

Ele gargalhou com vontade.

“Você gosta de música?”

“Gosto.”

“Você já foi ao Municipal depois de reformado?”

“Ainda não.”

Ele ficou em silêncio e me encarou.

“Você é casada?”

Não acreditei que ele estava encaminhando o papo para essa direção. Respirei fundo.

“Não.”

(...)

“Você tem namorado?”

Ri visivelmente admirada com o movimento audacioso dele.

“Tenho...”

“Claro que tem... desculpa a pergunta, é que sou amigo da Carla Camurati e ganhei dois ingressos para Sábado ver a Orquestra Sinfônica Brasileira tocar Stravisnky... se você não fosse comprometida iria te convidar, mas já que você tem namorado, não convém...”

“É... não convém...”

“Desculpas.”

“Tudo bem.”

“Eu preciso ir... desculpa te incomodar, mas precisava conversar com alguém enquanto o susto não passava... imagina, um homem da minha idade levar uma bolsada de uma velha! Muito obrigado mesmo pela sua paciência.”

“Imagina, foi um prazer.”

“Meu nome é Lúcio.. qual é o seu?”

Pensei se dava o nome certo ou não.

“Barbara.”

Ele estendeu a mão dele. Eu estendi a minha. Ele beijou minha mão com o olhar mais galeanteador do mundo. Me concentrei em algo muito sério para não rir, apesar de também sentir um pouco de lisonjeio pelo ato.

Ele foi embora agradecendo a companhia mais uma vez e saiu da loja.

Pedi um segundo expresso para comer a outra metade da quiche que ainda me esperava. Estava murcha, mas encarei.

Na mesa ao lado percebi que havia outro senhor, muito mais velho que Lúcio. Ele estava com uma menina muito mais nova do que eu, possivelmente uma espécie de acompanhante/enfermeira. Ela era bastante faceira. A garçonete trouxe meu café e foi anotar os pedidos deles. Só ele falou.

“Uma torta de morango e uma xícara de chá preto.”

A garçonete anotou o pedido e foi para trás do balcão.

“O senhor hoje não irá pedir madeleines?”

“Hoje não.”

“Se incomoda se eu pedir para mim?”

O velho riu com todo o prazer do mundo.

“Não me incomodo nem um pouco. Hoje você quem nos conduzirá à Combray.”

A menina olhou para ele como se nada compreendesse.

“Gosto de você porque você aprende rápido.”

A menina gargalhou de maneira vulgar e orgulhosa. O velho gargalhou de maneira cínica. Os dois se entendiam.

Comi o resto da quiche fria, bebi o café. Estava na minha hora. Paguei minha conta e voltei ao mundo real.


Barbara Kahane

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