Encontrei esta carta dentro de uma garrafa de Miolo, boiando na piscina da cachoeira da trilha da Pedra da Gávea.
"Com o calor da subida e o amolecimento progressivo do corpo, os suantes e suantas de ancas depiladas da escalada de hoje, excessivamente preocupados em secar o suor que lhes cai da testa com as mãos, poderiam aproveitar este convite à maleabilidade e pressionar o rosto com as pontas dos dedos. Ao invés de usá-los para apontar, sedentos, garrafas d'água que brotam das mochilas alheias, os trilheiros poderiam desfrutar das possibilidades trazidas pela auto-remodelagem, como quem curte uma estimulação russa. Esta técnica, desenvolvida pelos intraterrinos, seres que habitam o interior da Pedra da Gávea, consiste em remodelar o rosto à imagem de alguma formação rochosa que se assemelhe a um. Evitarei os detalhes do passo a passo, que é simples, bastando concentrar-se na imagem da pedra escolhida e cavar dois buracos na região ocular, como se esta fosse feita de barro. Depois, é preciso apenas esperar alguns instantes, à sombra. De volta ao sol, basta piscar as pálpebras algumas vezes para passarmos a ver a vista através dos olhos do rosto na pedra. A pedra vista no alto da foto que coloco nesta garrafa é a preferida entre os intraterrinos mais saidinhos. Lá, à noite, costumam pousar naves vindas do espaço, e os intraterrinos que estiverem experienciando uma estadia de remodelagem nela são agraciados com uma delirante massagem em seus couros cabeludos e ombros, quando desembarcam os extraterrestres com suas pequenas patas gelatinosas e irriquietas.
Quem nos revelou estes segredos foi Verne, um intraterrino gente fina que auxilia os humanos na escalada da Carrasqueira.
Vendo a empatia de Verne junto aos humanos, Jules, um intraterrino cisudo e desconfiado que não vê com bons olhos a aproximação entre seu povo e os incautos baderneiros que perturbam a paz da encosta, ajoelhou-se na ramagem, e com voz altiva mezzo delirante disse:
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O que Verne, visivelmente emocionado, prontamente traduziu:
"Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso."
Verne declamava procurando em nossos olhos a aceitação, num carioquês penoso e emocionantemente esforçado, cerrando as sombrancelhas verdes como se a clareza da linguagem fosse um suco de lembranças extraido do brilho de suas retinas chorosas. Gesticulava tão enfaticamente suas pequenas garras, remexendo sem reparar sua calda escamosa pra cima e pra baixo a cada sílaba destacada, que pensei se tratar de uma questão de vida ou morte ele ver a comoção estampada em nossas caras. Mas a essa altura a lambança da desordem já reinava... alguns urinavam no mato, outros estranhavam a tradução de Verne durar o triplo do tempo do discurso original proferido por Jules. Outros, impacientes, confabulavam cervejas ao fim do dia. Um casal de intelectuais alcoolizados balbuciava a denûncia de que as palavras eram todas tiradas de um texto manjado de um tal de Wagner Beijasmim (ou algo assim). Eu já não via muito bem entre a cortina de suor salgado que pingava dos meus cilios, nem escutava por conta das cigarras alucinadas ao redor, e o resto do grupo não prestara atenção em xongas, mais preocupados em enxugar suas testas em chamas naquele calor da porra.
Signifrito Figueiroa
3 comentários:
eureka.
legal o ritmo da página... tão anti-blog.
ab e bjos
cheio de estilo! cada vez. gosto muito.
azzi
( fui eu q apaguei acima. ninguém precisa morrer de curiosidade)
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