quinta-feira, janeiro 10, 2008

ESSES SEUS OLHOS MEUS

Soube o que ela iria me dizer muito antes das palavras serem expelidas por sua boca como pequenas granadas em minha direção. Acho que essa foi a razão da minha reação de total falta de surpresa após o veredicto me ser notificado, deixando-a por conseqüência embasbacada e puta por contrariar a sua expectativa de como eu iria me sentir quando ela começasse a dizer suas últimas ponderações.

Eu nunca lhe disse que era dona de olhos que traiam sempre as suas tentativas de dissimulação. No momento em que descobri essa sua, digamos, fraqueza, optei por me calar, já que desconfiava que essa sua característica um dia me poderia ser útil. Então, quando ela entrou no salão e me viu solitário no meio das mesas lotadas, eu soube por seu olhar recém pousado sobre mim qual seria meu verdadeiro destino. E por mais que, já à mesa, ela disfarçasse com palavras ao vento na tentativa de me ludibriar ao sugerir a carne de porco para a nossa refeição, eu sabia que não era ela tentando ser gentil. Por detrás das palavras doces existia o desejo de me fazer um mal. Sua delicadeza não passava mais do que isca para me pescar pela boca, mas quem acabou boquiaberta, no final das contas, foi mesmo ela.

Ela achou que me tratando com suavidade eu acabaria interpretando, antes mesmo dela me dizer, seu comportamento como perdão, que, diga-se de passagem, eu nunca pedi. Mas ela certamente não contava que eu sabia ler os seus olhos e que eles sempre deduravam quando de alguma forma ela tentava me ou se trair. Independente de tudo o que aconteceu, eu sempre soube que seus olhos eram meus. E era assim que eu sempre saia na frente, pois me parece que apesar de seus olhos fazerem parte do seu corpo ela nunca suspeitou que era eu quem podia decifrá-los melhor. Pode parecer estranho, mas quando seu olhar cruzava o meu eu podia adivinhar exatamente o que ela estava tramando e qual o tom de suas próximas palavras. Devo mesmo concluir que o encantamento dela por mim se deu por causa desse meu talento de interpretar todos os seus desejos e vontades apenas mirando por um único segundo os seus grandes olhos. E quando eu ficava quando ela me dizia que poderia ir, quando eu ia quando ela me falava que se eu quisesse poderia ficar, quando eu a abraçava e acariciava os seus cabelos após ela se vangloriar de o quanto era independente ou quando eu soltava suas mãos e sussurrava “pula” quando em noites desesperadas ela esperneava que não iria conseguir, se fiz cada uma dessas coisas contrariando o que suas palavras me diziam e obtive êxito absoluto foi porque sempre soube o que seus olhos queriam dizer.

Nossos incontáveis mal entendidos e conseqüentes brigas sempre que tentávamos falar ao telefone é a prova disso que estou tentando dizer. Sua voz sempre firme me fazia crer que as palavras que eu ouvia pelo fone significavam exatamente aquilo o que elas deveriam ser. Mas com ela a coisa nem sempre era assim e sem seus olhos para me guiar em nossas conversas, eu era apenas um menino perdido num país estrangeiro Agora eu sei como nunca a entendi plenamente. Sem as pistas de seus olhos brilhantes me fitando antes de qualquer sentença eu nunca consegui me comunicar com ela. Ela sem seus olhos, para mim, era absolutamente ninguém. Ou pior, um ser alienígena desprovido de qualquer possibilidade de contato e integração.

Então, quando hoje ela entrou por aquele salão lotado, bastou uma rápida olhada em direção dos seus olhos que passeavam por todas as direções do ambiente a minha procura para eu compreender o que estava por vir. Esses mesmos olhos que contrariando os ais, uis e te amos daquela noite de dois, três meses atrás, me disseram, numa rápida espiadela que lhe escapou quando ela fazia nua o trajeto da cama para o banheiro que a verdade de verdade era que eu já a havia perdido; e que o ardor de instantes antes era para outro que não eu. Depois, esses olhos choraram, mesmo transparecendo alegria indisfarçável, quando eu menti dizendo que existiu uma Ana. Ela retrucou com palavras duras e magoadas que não sabia se poderia mais me amar enquanto seus olhos gargalhavam. Ela me pediu um tempo para pensar e avaliar a situação quando seus olhos se regozijavam diante a possibilidade de libertação de mim.

Por isso quando eles entraram no salão eu vi que vieram prontos para dizer adeus. Prontos para nunca mais terem que me ver novamente. Então, quando ela se sentou e começou a me bajular ensaiando em tom agudo e doce velhas brincadeiras de nós dois, eu soube que o que ela queria era somente me ferir. Mas não existiu surpresa, e quando ela me disse, diante à xícara de café suja de batom e esperando que eu abrisse a conta e me prontificasse a pagá-la inteiramente, que o casamento estava cancelado, eu apenas joguei duas notas de cem sobre a mesa, me levantei, beijei sua cabeça e disse adeus no tom mais casual e sem afetação possível. E quando já chegando à porta do restaurante resolvi dar uma olhadela rápida para trás, percebi em sua expressão que ela acabara de reconhecer os grandes traidores que viviam com ela há vinte e sete anos. Os olhos humilhados diante a boca aberta em espanto. Ela agora sofria de verdade e, nesse único e derradeiro momento, não houve um músculo de seu rosto que eu fui incapaz de entender.

Barbara Kahane

3 comentários:

Demoiselle Retro disse...

Miss Kahane, que belo blog :) Pescobeijos e até daqui a pouco no Rio.
Renatinha

Unknown disse...

Oi Bárbara ! Gostei da sua prosa, reconheço a filiação aos nossos cronistas da década de 60, Rubem Braga, Sabino e cia, num ambiente século XXI. Legal !!!
Ricardo

Mariana Kaufman disse...

barbara... sem palavras.
meus olhos traidores me denunciam toda a emoção e amor desse lindo furacão de palvras.